O que
são a Terceira e Quarta Crónicas breves de Santa Cruz
«Entre
as lendas relativas a Afonso Henriques podemos distinguir claramente duas
séries. Uma é monástica.
Afonso Henriques é o fundador de dois mosteiros que tiveram grande importância
na primeira fase da monarquia, o de Santa Cruz e o de Alcobaça, e
ambos contribuíram para conservar e engrandecer a sua memória. Em Santa Cruz se
deve ter escrito um relato latino do século XII, no qual o próprio rei, falando
na primeira pessoa, conta aos monges o assalto e conquista de Santarém. De Alcobaça
saiu a invenção da fundação milagrosa do mosteiro, relacionada com a mesma
conquista: Afonso Henriques teria feito o voto da sua fundação antes do
combate, e São Bernardo, em França, teria tido a revelação dela e orado a favor
da empresa. O escrito latino de Santa Cruz tem origem nos acontecimentos,
embora seja obra de um eclesiástico, destinada a eclesiásticos; mas o milagre
de Alcobaça é mera invenção dos monges, que mais tarde vem a ser integrada na Crónica
Geral de Espanha de 1344, redigida em português. Tem o mesmo espírito
que o episódio do milagre de Ourique, que aliás não se encontra nesta crónica e
só aparece na de 1419. Tanto este
como o da fundação milagrosa de Alcobaça são arabescos de escribas pios.
A
outra série é, cavaleiresca e dela faz parte o famoso episódio do bispo negro,
que Herculano romanceou nas Lendas e Narrativas. Em caso nenhum
essa lenda, pela linguagem, pelos personagens, pelo enredo e pelo espírito
poderia ser imaginada e escrita por clérigos. Herculano inspirou-se num códice
proveniente de Santa Cruz, copiado em fins do século XV. Conservam-se dele duas
crónicas breves, cuja parte principal é constituída por uma vida de Afonso
Henriques, conhecidas pelo nome de Terceira e Quarta Crónicas Breves de Santa
Cruz. São obras paralelas, aparentemente gémeas, pois contam
aproximadamente a mesma tradição. Mas esse paralelismo é só de fachada, porque,
analisando a linguagem e a forma literária, vê-se que a Quarta Crónica Breve é muito
anterior à outra, de modo que a Terceira Crónica parece, à primeira
vista, uma versão actualizada da sua suposta gémea. E, como quem conta um conto
sempre lhe acrescenta um ponto, o texto mais moderno introduz modificações e
acrescenta um personagem, Egas Moniz, de que não fala a versão mais
antiga.
Sabemos
hoje que esta Terceira Crónica é, só um extracto da Crónica Geral de Espanha de 1344.
Há outra versão coincidente com a Quarta Crónica: uma versão parcial
(sem o episódio do bispo negro e sem o desastre de Badajoz) no Livro
de Linhagens do conde D. Pedro e uma versão completa em castelhano
antigo numa crónica castelhana XIV chamada de Vinte Reis, que serviu de
fonte à crónica portuguesa de 1344.
Graças a Diego Catalan, sabemos hoje que esta Quarta Crónica Breve é um
fragmento de uma crónica galego-portuguesa citada pelo cronista Cristóvão
Rodrigues Acenheiro na primeira metade do século XVI.
Baseados
na Quarta
Crónica Breve, na Crónica de Vinte Reis e no Livro
de Linhagens do conde D. Pedro, vamos resumir a lenda que tem
escandalizado desde o século XVI os historiadores do establishment, que a declaram inverosímil, inconveniente e até
difamadora da memória do nosso primeiro rei, mas que impressionou vivamente a
imaginação romântica de Herculano, sensível à poesia popular». In
António José Saraiva, A Cultura de Portugal, Teoria e História, Gradiva, Lisboa,
1991, 2007, ISBN 978-972-662-190-4.
Cortesia
de Gradiva/JDACT