sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A Bela Poesia. Ruy Belo. «E penso que se nunca a bem dizer te vejo se fosse além de ver-te sem remédio te perdia. Mas eu dizia que te via aqui e acolá [...] Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te e antes de chegares já lá estavas naquele preciso sítio combinado…»

Cortesia de wikipedia

Muriel
«Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te.
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te.

Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem.
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava.

Tu sabes como era se soubesses como é.
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou.
Eu tinha uma cidade tinha o nome de Madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então Madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti.

Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te.
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais.
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te.

Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema Rosales.
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem.

E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia.
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te.
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente».
[…]
Poema de Ruy Belo, in ‘Todos os Poemas

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