quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O Museu das Palavras. António Galrinho. «Quando o meu tio terminou o curso fez uma proposta, por brincadeira, a um velho ferreiro. Ofereceu pela sua oficina uma quantia baixa, que não tinha, dizendo-lhe que queria fazer dali uma livraria. O velho respondeu: - Olha que esta pocilga até te ficaria bem entregue!»

jdact

Tempo de Apresentar. Uma herança peculiar
«Sou proprietário de uma livraria situada na baixa de uma cidade com cerca de cem mil habitantes. A baixa é o centro histórico, antigo bairro medieval. Não me posso queixar da localização, pois a essa zona aflui ainda muita gente, por aí se concentrar uma parte significativa do comércio da cidade. Quase todas as ruas são pedonais, o que propicia um ambiente agradável a quem por lá se desloca. A concorrência também é pouca, já que apenas seis livrarias existem na cidade. Metade delas são uns cochichos, como a minha.
O surgimento de grandes superfícies comerciais nos arredores veio constranger muito do comércio tradicional. Várias lojas faliram, outras estão perto de falir. Em poucos anos a baixa deixou de ser aquilo que era. Cem mil pessoas são muita gente, mas poucas compram livros e menos ainda os leem. Resumindo: não é fácil sobreviver com esta actividade. Herdei a livraria do meu tio paterno. A memória mais antiga que tenho é um acontecimento passado nela, num dia em que lá fui com a minha mãe, que procurava um livro para oferecer. A certa altura, enquanto ela passava, atenta, os olhos pelas lombadas dos livros, o meu tio ajoelhou-se à minha frente, agarrou-me nos ombros e, com os olhos bem firmados nos meus, disse: - Ouve bem, Carolino! Quando aprenderes a ler, vê se ganhas gosto pelos livros! Fez uma pausa, que eu não interrompi, e continuou: - Quando cresceres, esta livraria fica para ti.
Ouvi isto sem mostrar espanto mas, lá no fundo, estranhava o facto de ele querer dar-me todos aqueles livros. Olhei para uma parede coberta por estantes com prateleiras cheias e pensei que nunca os conseguiria contar, quanto mais encontrar um livro que me pedissem. Já não consegui olhar para as outras paredes porque o meu tio pegou na minha mão e levou-me para o meio da rua. Virou-me para a fachada da livraria, que na altura me parecia enorme, e disse: - Olha aquelas letras! Fui eu que as mandei fazer a um ferreiro, assim mesmo, com aquele tamanho e aquele feitio. É o nome da livraria. Sem conhecer uma sequer, olhei atentamente as letras colocadas acima da porta e da janela, a toda a largura da fachada. Não tinha reparado nelas antes.
 - Vou-te contar a história do nome da livraria, E contou, só que, na altura, achei-a comprida e complicada e esqueci-a. Mas, o ano após ano, ouvi-o contá-la várias vezes. O meu tio, quinze anos mais velho do que o meu pai, foi a primeira pessoa da família a estudar numa universidade. Desde muito cedo mostrou uma inteligência e uma vontade de aprender muito além das comuns. Podia ter tirado qualquer curso em qualquer área, mas a paixão pelos livros levou-o a optar por Literatura.
O meu pai teve uma inclinação bem diferente, cursando engenharia eletroctécnica. Fez o curso contrariado, apenas para agradar ao meu avô, mas mal o terminou começou a trabalhar como electricista, aquilo que sempre quis ser. Sempre preferiu actividades em que pudesse usar mais as mãos. O meu avô, pescador com um modesto barco por sua conta, conseguiu fazer com que ambos os filhos estudassem, para não se sujeitarem à vida dura do mar.
Quando o meu tio terminou o curso fez uma proposta, por brincadeira, a um velho ferreiro. Ofereceu pela sua oficina uma quantia baixa, que não tinha, dizendo-lhe que queria fazer dali uma livraria. O velho respondeu: - Olha que esta pocilga até te ficaria bem entregue! Coisa que sempre me deu que pensar foi isso das letras em carreirinho a fazer palavras onde fica escrito o que a gente diz e pensa! Não as compreendo porque não as aprendi. Nunca pus os pés numa escola». In António Galrinho, O Museu das Palavras, Temas Originais, Setúbal, Livraria Uni-Verso, 2014, ISBN 978-989-688-216-7.

Cortesia de TOriginais/JDACT