domingo, 24 de agosto de 2014

Da Vinci. Maquiavel. Bórgia. O Mundo que eles Criaram. Paul Strathern. «Conhecem-se poucos factos relativos aos primeiros anos de Leonardo e temos de nos basear em comentários ocasionais, com frequência enigmáticos, que ele fez anos mais tarde nos seus cadernos de apontamentos»

jdact

Uma Constelação Única
«(…) Depois dos meses de Inverno que passaram juntos na Romagna, Leonardo, Maquiavel e Bórgia separaram-se em busca dos diferentes destinos. Cada um seria influenciado pelo que tinha vivido: cada um seria bem-sucedido e fracassaria do seu jeito característico. Leonardo procuraria distanciar-se das convulsões políticas para poder prosseguir com as suas cogitações privadas; no entanto, estas mesmas especulações atraí-lo-iam de volta à luta. Maquiavel tentaria influenciar os acontecimentos; todavia, o facto de não o ter conseguido confirmaria no seu caso a verdade subjacente ao mundo político. Bórgia procuraria desempenhar um papel de líder em Itália, usando todos os meios ao seu dispor, especialmente a traição; contudo, seria a traição que acabaria por ser a sua desgraça. O Renascimento italiano foi um cenário onde a arte e a história, a literatura e a política, a ciência e a guerra estavam indissoluvelmente emaranhadas: Leonardo, Maquiavel e Bórgia estavam tão metidos neste emaranhado como quaisquer outros. Para compreender estas três figuras, o artista, o filósofo e o guerreiro, temos primeiro de analisar as suas vidas antes de se conhecerem uns aos outros.

A aprendizagem de Leonardo
Leonardo da Vinci nasceu em 1452, numa zona campestre da montanhosa Toscana, perto da aldeia de Vinci, uns 30 quilómetros a ocidente de Florença. Era filho ilegítimo de Ser Piero da Vinci, um notário de 26 anos que, durante a infância de Leonardo, passou a maior parte do tempo em Florença, dedicado a uma carreira bem-sucedida. Tudo o que se sabe acerca da mãe de Leonardo, Caterina, é que ela era uma camponesa de 25 anos, filha provavelmente de um lenhador local.
Conhecem-se poucos factos relativos aos primeiros anos de Leonardo e temos de nos basear em comentários ocasionais, com frequência enigmáticos, que ele fez anos mais tarde nos seus cadernos de apontamentos. Um dos primeiros exemplos é o comentário de Leonardo quando escrevia sobre o voo das aves, neste caso quando observava o voo do milhafre-real, uma ave que sobrevoava Vinci com frequência, vinda das encostas do vizinho monte Albano:

Escrever com tanto detalhe acerca do milhafre parece ser o meu destino, dado que a primeira memória da minha infância me parece ser que, estando eu deitado no berço, um milhafre desceu e varreu-me a boca aberta com a cauda, e bateu-me por diversas vezes com a cauda na parte interna dos lábios.

A partir deste sugestivo fragmento, Freud construiria toda uma história psicológica para Leonardo, desde o trauma da separação da mãe e consequentes sentimentos ambivalentes para com ela, até à sua homossexualidade e relutância em terminar os projectos que iniciava. Infelizmente, a tradução alemã utilizada por Freud traduzia a palavra italiana para milhafre, nibbio, como abutre, dando no geral um tom bastante mais sinistro a esta recordação. Apesar deste erro, parece plausível o suficiente a afirmação de Freud de que a cauda a tocar-lhe os lábios era uma imagem disfarçada do mamilo da mãe, quando ela o amamentava. E há poucas dúvidas de que Leonardo sofreu de facto um trauma ao separar-se da mãe. Anos mais tarde, escreveria uma série de adivinhas, entre as quais o tema recorrente da separação violenta de uma mãe de um filho. Um exemplo típico diz: Muitos filhos são arrancados dos braços da mãe com golpes violentos e lançados ao chão para serem mutilados. A resposta à adivinha é, de facto, nozes, azeitonas e bolotas, mas a força da imagem anterior mostra-se sugestiva. Em 1456, quando Leonardo tinha quatro anos, a Toscana foi devastada por uma grande tempestade, possivelmente um tornado. Anos mais tarde, ele recordava ainda com grande intensidade:

Testemunhei movimentos do ar tão furiosos que arrastaram, misturados entre si, as maiores árvores da floresta e telhados inteiros de grandes palácios, e eu vi a mesma fúria abrir um buraco com a sua força de remoinho, escavando uma saibreira e levando consigo pelo ar gravilha, areia e água ao longo de quase um quilómetro.

Vários anos depois, o rio Arno transbordou das margens, causando graves inundações em todo o vale do Arno. A força destes dois desastres naturais que Leonardo testemunhou na juventude permaneceria durante muito tempo na sua memória, tendo o último desencadeado um fascínio temeroso por dilúvios e inundações que se prolongaria por toda a sua vida». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.

Cortesia do CAutor/JDACT