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Os jornalistas, enfim, só recentemente começaram a fazer da visibilidade uma
divisa para o seu trabalho: honra lhes seja feita, com exclusão dos que
praticam as regras da selectividade. Cada silêncio tem a sua explicação. Mas
todos têm de comum o receio de prestar contas: podem ser as ligações perigosas
do poder, as necessidades da propaganda política ou o desejo de esconder os próprios
insucessos; pode ser a concepção errada do interesse nacional, geralmente
confundido com o do Estado, do Estado num momento particular, de um governo;
como poderá ser a convicção de que a política, com as suas artes, é domínio
reservado aos sábios e aos sacerdotes. Pode ser tudo isso e muito mais. Mas os
traços comuns a essas explicações são detectáveis. Crê-se que a opinião pública
é prejudicial à conduta dos assuntos do Estado. Pensa-se seriamente que a
democracia se esgota na eleição, isto é, que um poder eleito tem carta-branca
para fazer o que entende durante o seu mandato. Não se pode passar a vida a discutir, é preciso
decidir!: eis uma
verdade banal transformada em horrível aforismo da cultura do sucesso. Julga-se
que a prestação de contas aos eleitores e aos eleitos, assim como os debates
públicos que daí decorrem, são travões à eficácia dos governos. Aceita-se finalmente
que a administração pública tem tais responsabilidades e é tal a sua gravidade,
que só em segredo ou discretamente pode desempenhar as suas funções. Assim é
que, apesar das garantias constitucionais, os cidadãos não têm ainda, de facto,
direito a consultar os arquivos, nem sequer os que lhes dizem respeito.
Os
estudiosos, os universitários, os jornalistas ou qualquer outro cidadão, justificadamente
interessado, também não têm direito a consultar os arquivos oficiais, estudos,
registos ou correspondência, dado que não há prazos legais, nem regras de
acesso, nem sequer arquivos organizados com esse fim (ou antes, há alguns arquivos,
poucos estão organizados, quase todos estão inacessíveis). Ainda hoje há sérios
obstáculos à consulta de documentos oficiais do princípio do seculo!
Nos
assuntos de actualidade, a Administração Pública, por iniciativa própria ou
instruções do governo, mantém secretos os seus estudos, sejam eles sobre
questões de defesa ou sobre problemas do ambiente ou da saúde. Trabalhos
preparatórios de legislação, análises de situações, relatórios de fiscalização
e acompanhamento, quase tudo o que é produzido nos departamentos ministeriais é
reservado. Ora, muito pelo contrário, a regra deveria ser a da publicidade, a
fim de que se percebam os fundamentos e
as eventuais consequências dos actos do governo e da administração.
As
questões de defesa são, por definição, secretas. Apesar de ínfimos progressos
recentes (por exemplo a publicação de documentação sobre a guerra colonial e de
um livro-branco sobre a defesa), quase
tudo o que diz respeito às Forças Armadas é sensível,
sendo-o domínio secreto, entre nós, muito mais vasto do que nos países
ocidentais, mesmo nos que têm mais responsabilidades, incluindo a de possuir
segredos estratégicos. Os números e os factos sobre as Forças Armadas, o
recrutamento, a distribuição por patentes, os gastos, os orçamentos, os tipos
de armamento, o comércio externo de armas, os planos de expansão e desenvolvimento,
os debates sobre estratégias e organização da defesa, em tudo isto, que não é
pouco, mantém-se uma larguíssima zona de confidencialidade, mais própria de um
regime inseguro do que de um Estado democrático». In António Barreto, Os Silêncios
do Regime, Ensaios, Imprensa Universária, nº 96, Editorial Estampa, Lisboa,
1992, ISBN 972-33-0877-0.
Cortesia
de Estampa/JDACT