A Alguém
que me perguntava se o Pensamento Grego continua válido para Nós
«O
pensamento grego, ou melhor, as diferentes formas tomadas pelo pensamento dos
filósofos gregos, é essencialmente minoritário: quero eu dizer que, na própria
Grécia e na sua época, essas ideias foram de todas as vezes apanágio de um
pequeno número. Não falemos do pensamento grego no seu conjunto: falemos das
escolas pré-socráticas, da Academia, dos Peripatéticos, do Pórtico ou dos
Jardins de Epicuro. No decurso do último século, demasiados espíritos bem intencionados
(Renan era um deles e poderíamos citar muitos outros) tentaram
apresentar ao público, uma Grécia perfeita e, por assim dizer, aconchegada a si
própria no decurso de alguns séculos, excepcional e única, oferecendo
simultaneamente um exemplo ideal da arte de pensar, das virtudes heróicas, da
beleza e da arte de viver. Esta imagem ideológica e académica era falsa;
não correspondia, bem entendido, à realidade viva de um povo durante vários
séculos; contribuiu muito, sobretudo em França, para o público perder o gosto
pelas leituras e pelos estudos gregos: não se sentia interesse por aquela
estátua demasiado perfeita, talhada num mármore demasiado branco. Mas a
realidade é diferente. Em matéria de filosofia em todo o caso, o que se passa
com a Grécia é o mesmo que se passa com a China, que nunca ninguém, salvo alguns
ingénuos entusiastas do século XVIII, que a viam de muito longe, pensou
apresentar como a imagem exemplar da perfeição humana no decurso da sua história
milenária, mas que; tal como a Grécia, soube formular, ao longo dos séculos,
todas as vistas possíveis sobre a metafísica e a vida, o social e o sagrado, e oferecer,
para os problemas da condição humana, soluções variadas, convergentes ou
paralelas, ou muitas vezes diametralmente opostas, de entre as quais o espírito
possa escolher. Gregas ou chinesas, o seu valor, tal como o de uma equação
algébrica, permanece o mesmo, sejam quais forem as realidades particulares a que
cada geração o aplica. Passa-se com Confúcio e com Mêncio, com o místico
Lao-Tseu ou com o hedonista Motsu, ou ainda com os pragmáticos Legalistas, o
mesmo que com os chefes das diferentes escolas gregas: representam pontos de v:ista
que não cessarão de se combater, de se sustentar mutuamente ou de se corrigir,
uns pelos outros, enquanto o homem for homem. No futuro tal como no passado,
numerosos espíritos tornarão inevitavelmente a ter esses pontos de vista ou a
propor essas mesmas soluções, espontaneamente, e, por assim dizer, pela força
das coisas, sem sequer se referirem aos seus predecessores. Todavia, é provável
que, a menos de uma catástrofe que faça desaparecer todas as culturas, venham
por vezes a apoiar-se conscientemente sobre esses homens que enfrentaram os
mesmos problemas, e que isso confirme e fortaleça o seu sentimento da
continuidade e da fraternidade humanas através do tempo». In Marguerite Yourcenar, En
Pélerin et Étranger, Gallimard, 1989, Peregrino e Estrangeiro, Ensaios, Livros
do Brasil, Lisboa, 1990.
Cortesia
LBrasil/JDACT