segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Visão Imperfeita dum Parnaso Cristão. Carlos Corrêa Silva. «Frio não é Camões, que nunca talvez leste, quando Lianor cai pela fome vencida; ardente foi também a paixão dolorida que ao encerrar-me aqui senti por ti, Celeste»

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A uma Rapariga Linda e Doente
«Há frio no meu quarto onde sopra o nordeste,
branca parede está de retratos despida,
é de neve a ciência a que votei a vida,
deserto sem calor o da minh’alma agreste.

Frio não é Camões, que nunca talvez leste,
quando Lianor cai pela fome vencida;
ardente foi também a paixão dolorida
que ao encerrar-me aqui senti por ti, Celeste.

Brasa que se extinguiu, quimera que passou!
Diz-me uma voz que Deus ao tísico outorgou
o prazer de estudar, mas não o de casar.

Doce esquivança a tua e foi Deus que a mandou.
Minh’alma já não sonha o bem que então sonhou
e há muito tempo já por ti só quer’ rezar.

II
A minha poesia, eco do meu penar
ou sonho cerebral para o verso transcrito,
nasceu no sanatório e num quarto maldito
que o matutino sol não vinha visitar.

De longe em longe a aurora, em rápido passar,
dourava o pinheiral e à noite aerolito
de rumo incerto e vão fendia o infinito...
Mas tudo era fugaz, como a espuma do mar.

Hoje mudei de quarto... Alma desoprimida
horizontes de luz a tragos eu bebi
e a cura divisei que julgava perdida...

E tu, linda Celeste, irmã que eu tarde vi,
és a estrela a dizer ao náufrago da vida:
não te posso valer, mas tenho dó de ti.

III
Celeste, eu já parti… desta vez foi verdade.
Febre, sangue a correr, a saúde perdida
fez os meus procurar a mudança de vida
que dê vida às visões da sua ansiedade.

E tu foste ao partir anjo de caridade
dando-me o coração em terna despedida.
Vi então a amparar-me em trágica descida
a Heloísa ideal da minha mocidade.

Deus há-de coroar tua fronte formosa
pois bálsamo trouxeste ao pobre Prometeu
Agrilhoado ao leiro, à noite dolorosa.

Onde vou? Ninguém sabe. À morte? À vida? Ao céu?
... Quiseste ser p’ra mim a aurora luminosa
de um dia mais feliz que nunca amanheceu.
Sonetos de Carlos Corrêa Silva, in ‘Visão Imperfeita dum Parnaso Cristão’, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1932

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