O
Sim e o Não
«Ao
contrário do que diz Vieira, o non não é terrível. É uma palavra inteira, acabada, Por qualquer lado que se
tome. Mais brilhante que a afirmação é sempre a negação. Porque a negação ê a
afirmação que pára no limite dos riscos. Quem nega, afirma um critério, mas não
se responsabiliza pela reconstituição do que esse mesmo critério destruiu. Sim,
a negação é sempre mais brilhante que a afirmação. Porque quem apenas nega tem
na sua mão a possibilidade de todas as soluções positivas, inclusive, portanto,
a de quem, além de negar, afirma. Se eu digo apenas que este livro é mau, que este
quadro falhou, que determinada instituição social é um erro, e tenho razão (que
a tenho quase sempre, porque nada é perfeito), consegui isso mesmo: ter apenas
razão. Nem uma sombra corrói o juízo que emiti. Quem me ouve, pode suprir à
vontade o que lhe falta de positivo. Se digo que o quadro é mau pela cor, todas
as hipóteses de boa qualidade e harmonia de cores ficam ao meu alcance. Mas se
eu, além de negar, afirmar, escolher, dentre as mil hipóteses de afirmação, uma
só, expor-me-ei imediatamente à contradita de alguém. Negar é ter tudo o que se
não afirmou. Afirmar é ter só o que se escolheu com a afirmação. À primeira
vista, parecerá estranho que a negação seduza mais que a afirmação. E
admitir-se-á que ao leitor ou ouvinte do que nega, bastaria um nada de
imaginação para descobrir o logro.
Mas
não é imaginação que lhe falta: falta-lhe é justiça. É isto particularmente
visível no êxito do cómico. Porque uma das bases desse êxito, talvez, a mais
segura, é a fuga às responsabilidades, mediante a lisonja do leitor. Quem ri,
nega. A afirmação no cómico é sempre, intrinsecamente, uma negação. Descobrir
que a negação é muitas vezes um suborno, é difícil, precisamente, porque o
cultor do cómico nos ajuda a rir dos outos, ou da vida, que é um prazer pelo qual
pagamos qualquer preço, mesmo o de sermos logrados. Sem dúvida, rir dos outros
é muitas vezes justo. A mesquinhez do que se combate nem sempre merece a honra
da seriedade. Mas o processo é o mesmo que nos serve para rirmos com injustiça.
Diremos que, em si mesmo, o processo é injusto, até na medida em que lisonjeia
a vaidade pessoal do leitor, que por isso mesmo é levado a julgar os outros
inferiores a si próprio, quando nem sempre terá razão para isso.
Mas
o que, sob certos aspectos, é estritamente uma injustiça, orgulho, talvez
deslealdade (que o é só, quando o ataque é menos justo), vem a ligar-se, no
campo geral da arte, a uma necessidade humana, a uma exigência dessa mesma
arte. Porque uma condição geral para que a arte de hoje melhor vingue é
precisamente a de que ela negue. De um modo geral, digo eu,
porque a arte, que afirma, podendo ser muito mais bela, é, sem dúvida, muito menos
exequível. E só por isso, porque é difícil, toda a arte comprometida com um sistema
doutrinário é, na sua maior parte, inferior. Poder-se-á talvez descobrir, da
parte do espectador, na custosa aceitação da arte afirmativa, uma razão de
orgulho ou de vaidade (que é sempre, intrinsecamente, um orgulho menor). Porque
tal aceitação assenta, basicamente, na exigência do espectador de ser ele a
decidir. Se se propõe um romance à apreciação do leitor, é necessário que a
história nele incluída o convença. O romance tem de ser uma história verosímil
(como sempre teve, aliás, conquanto as exigências da verosimilhança não sejam hoje
o que foram ontem). Mas o ser uma história verosímil, implica o estar o leitor
à vontade, para que ele decida se é autêntica ou não. Se a história não é autêntica,
é que o autor pretende violentar o leitor, impondo-lha. Dando-se logo conta
disso, o leitor protesta, não acreditando».
In
Vergílio Ferreira, Do Mundo Original, Ensaios, Livraria Bertrand, Lisboa, 1979.
Cortesia
de Bertrand/JDACT