sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Poesia. Ruy Belo. «Se portanto chegares tu primeiro porventura alguma vez daqui a alguns anos junto de califórnia vinte e um que não te admires se olhares e me não vires. Estarei longe talvez tenha envelhecido. Terei até talvez mesmo morrido. Não te deixes ficar sequer à minha espera…»

Cortesia de wikipedia

Muriel
[…]
«Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza.
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não.

Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido.
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros.

Talvez pensasse que naqueles encontro
sem que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes.

Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais.
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros.

Até que certo dia não sei bem.
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá.
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se Madrid existiu.

Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires.
Estarei longe talvez tenha envelhecido.
Terei até talvez mesmo morrido.
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra.

Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda.

Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido».
Poema de Ruy Belo, in ‘Todos os Poemas

JDACT