Leituras
de Camões no Tempo dos Filipes
«(…)
Observe-se ainda como este leitor omnívoro, que preza Alciato, se esmera na
aplicação de In temerario (aplicação amargurada, porque, alongando-se dos
versos latinos do emblema, onde sobressai a pena sofrida pelos maus reis, o que
Marcos de S. Lourenço deplora é a desgraça do povo, como temos em nós muito bom exemplo:
- Propriamente, segundo doutrina moral, Faetonte significa um príncepe moço descabeçado que se não governa pelos conselhos dos velhos, que querendo governar-se por sua cabeça deita o reino a perder, como temos em nós muito bom exemplo e no nosso pouco venturoso rei Sebastião. Ele foi o Faeton, o carro mal governado foi este miserável reino, nós os Etíopes queimados que padecemos os danos que nos ele causou.
Observe-se,
enfim, como frisa a clivagem entre o tempo em
vida dos reis de Portugal e este
nosso tempo:
- Já no nosso Pornrgal em vida do seu Homero, em tempo deJoão de Barros, e em vida dos reis de Portugal, havia esta tinha de procurarem antes riquezas que bom nome, contra o conselho do sábio. E se já então havia esta doença, que será neste nosso tempo quando não há honra nem desejo de fama, nem quem dê por ela cousa alguä.
Marcos
começa a sua obra apoucando Os Lusíadas [...] Commentados de
Manuel Correia. Deles não diverge, no entanto, no criterioso apartamento do que
é português e do que é castelhano, e esse mesmo afã se verifica no texto de
Pires Almeida. A noção do corpo do reino e do império persiste, na diferença
entre nós e eles, na distinção do que a um pertence e do que do outro é, como
ressalta na conclusão desta anedota:
- Pôs El Rei D. Manuel aos de seu conselho, o como se haveria com Fernão de Magalhães, que andava em Castela tratando cousas contra seu serviço. Respondeu o duque de Bargança, não faça V. A. caso de escudeiros, que pode esse agora fazer? Acudiu a isto o arcebispo de Lisboa, dizendo: Senhor, inimigo, ou grande ou pequeno, sempre se há-de temer. El Rei não fez caso de Fernão de Magalhães, ele foi por diante com sua desleal tenção, e deu muito que fazer a este Reino, e estarem hoje Castelhanos no Moluco a este descudo se deve.
Quando
se trata de explorar relações tensas entre Pornrgal e seus vizinhos, os
comentadores amplificam a narração construída por Camões. E se já de si é
relevante a preservação do texto sem os cortes introduzidos em 1584,
1591 e 1597,ou sem os eufemismos infìltrados nas traduções castelhanas
de 1580
e 1591, mais o é o discurso que defende, como um valor máximo, a conservação da
soberania. O verso uns leva a defensáo da
própria terra, no prelúdio da batalha de Aljubarrota (Os Lusíadas, IV), inspirou
a Manuel Correia-Pedro de Mariz uma glosa cortante como uma sentença
inabalável: Estes eram os Portugueses, que
pelejavam pela defensão de sua Pátria, a qual os Castelhanos muito desejavam,
não sendo sua, nem tendo direito nela. Marcos não terá chegado a comentar o
Canto IV do poema, mas a obra que deixou permite supor que havia de abraçar o rumo
de Correia-Mariz:o caso de Fernão de Magalhães fá-lo citar Também dos portugueses alguns tredores houve algüas vezes, sem reprimir
um desabafo, e inda mal, porque foram e
são tantas. Pires Almeida, o menos político dos quatro, não se absteve de
opinar, sobre a exortação guerreira de Nuno Álvares, que ressumava ousadia, confiança, justiça, razão, exemplo».
In
Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII,
Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.
Cortesia
da FCGulbenkian/JDACT