sábado, 27 de setembro de 2014

Cavaleiro de Oliveira. Aventureiro do Século XVIII. Artur Portela. «O ‘cliché’ era que o século XVIII português foi o marquês de Pombal que o inaugurou, por decreto, e brutalmente. Portugal estava fechado a ‘sete chaves’. A primeira, a Inquisição (maldita); a segunda, a Companhia de Jesus; a terceira, a Universidade; a quarta, o teocentrismo; a quinta, a Escolástica…»

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De Voltaire a Pombal
«(…) É, desde logo, o Século das Luzes. Luzes claras, princípios nítidos, princípios universais: princípio da identidade, da não contradição, da causalidade, da legalidade. Século da Razão toda poderosa. Século da passagem da teologia da História à filosofia da História. Século do Optimismo. Século do Progresso. Século da consagração do direito à propriedade individual e do direito, digamos mesmo do dever, de a acrescentar. O Progresso não é uma intenção perdida no futuro. É uma prática e é um quotidiano. Um utilitarismo, um newtonianismo moral. O senso comum. Está à mão de semear. E de embolsar. A felicidade era ali, e então. Século eminentemente burguês, este. E, no entanto, é no século XVII que estão as grandes fontes: Galileu, Newton e Locke. O poeta inglês Pope escreve: A natureza e as suas leis estavam escondidas na treva; faça-se Newton, disse Deus, e tudo então brilhou. Herdeiro do século libertador que foi o XVII, o século XVIII é um século de divulgação, de propagação de enciclopédias, de dicionários, o de Voltaire, portátil, das gazetas, dos cafés, dos salões, das sociedades secretas, da franco-maçonaria, do combate polémico, da instrumentalização habilmente burguesa.
É isso, o século XVIII tem, não propriamente um protagonista, mas um homem-tipo. Na sua qualidade, no seu limite, na sua superficialidade: Voltaire. É o filósofo de combate, engagé, europeu, universal, enciclopédico, versátil, dramaturgo, historiador, romancista, dicionarista, jornalista, polemista, folhetinista, epistológrafo. Século do despotismo esclarecido; que os filósofos, um pouco ingenuamente, supuseram ensinar aos déspotas, mas que os déspotas, habilmente, pragmaticamente, beberam nos filósofos. Os déspotas iluminados acotovelam-se na Europa: são Frederico II, na Prússia, Catarina II, na Rússia, José II, na Áustria, Gustavo III, na Suécia, Estanislau Augusto, na Polónia. É a contradança, o minuete de que fala Paul Hazard, esse jogo de mesuras, entre déspotas e filósofos: Voltaire vai a Berlim, Diderot, a Sampetersburgo. E D’Alembert diz esta coisa enorme a Frederico II: Os filósofos e os homens de letras de todas as nações encaram-vos há muito, majestade, como o seu chefe e o seu modelo. Século, também, da contra-revolução aristocrática. Vã, aliás. Porque seria o século da revolução burguesa e da político-institucionalização da nova ordem social.
Século da laicização da inteligência, da mundanização da cultura, do regalismo, do antipapismo, do brado voltairiano Écrasez l’infâme!, já do ateísmo e do materialismo. Da inteligência feita tudo: filosofia, negócio, jogo, galantaria, amor, liberdade e libertinagem. Século da cultura francesa: da língua, do estilo, das réplicas europeias de Versalhes: Hampton Court, Coblença, Potsdam, Wurtzburg, Mannheim, Schönbrunn, Colorno, Caserta, Estocolmo, Peterhof, La Granja, Queluz. Século dinâmico, transformador e em transformação, móvel, viageiro, curioso, cosmopolita, cheio de cidades-palcos, de cidades-sóis, de cidades-luzeiros, à altura das esperanças e das ambições e das rivalidades dos reis-Estados, ele é o século da mobilidade social, da correspondência entre os reis e os filósofos, entre os príncipes e os charlatães, do teatro mundano, da aparência, das fortunas rápidas, das bancarrotas monumentais, à Law. Século, finalmente, das inquietações, das emoções, dos sentimentos, da subjectividade, do pré-romantismo, de Rousseau, do nacional-romantismo de Goethe, do que é, e mais será, o Sturm und Drang.
O cliché era que o século XVIII português foi o marquês de Pombal que o inaugurou, por decreto, e brutalmente. Portugal estava, dizia-se, fechado a sete chaves. A primeira, a Inquisição (maldita); a segunda, a Companhia de Jesus; a terceira, a Universidade; a quarta, o teocentrismo; a quinta, a Escolástica. E por aí adiante. Até que, por indicação testamentária de Luiz da Cunha a Lisboa, o rei José I nomeou Sebastião José Carvalho e fez-se, em Portugal, Europa. É um cliché. Está ve1ho. E está errado. Nem a mudança que Pombal exprime começa sob José I, nem sequer será Pombal a inaugurar, destacado, sob José I, a mudança levada por diante nesse reinado. Ela inicia-se ainda no período joanino. E Pombal começa por ser apenas um dos homens do grupo chamado ao poder. Mais. Esta mudança, definida por Jorge Borges Macedo como apontada ao reforço do Estado como entidade exclusiva, não só no domínio político e administrativo como cultural e até religioso, entronca, no plano cultural, num movimento mais amplo. Como o século XIX começou no seio do XVIII, também o nosso século XVIII começou no seio do XVII. As dinâmicas sociais, económicas e culturais não contam até cem para virar as grandes esquinas da História». In Artur Portela, Cavaleiro de Oliveira, Aventureiro do Século XVIII, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 1982.

Cortesia da INCM/JDACT