sábado, 6 de setembro de 2014

O Sonho da Rainha. Alberto Pimentel. «Como a rainha é feliz n'aquella formosa montanha, em cujo bosque as aves cantam e o sol depõe os seus primeiros beijos de luz! E comtudo, senhora, vós pareceis viver constantemente num sonho dolorido, que não nos é dado perscrutar»

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De acordo com o original.

«Numa grande reunião, realisada no edifício do ministério do reino em 11 de junho de 1899, dissera Sua Magestade a Rainha de Portugal, D. Maria Amélia de Orleans:
  • Afflicta pelo que via nas casas pobres, nos hospitaes que visitava e ainda pelo que lia em innumeros requerimentos, em que a tisica apparecia sempre como a nota mais sombria, já ha muitos annos o meu ardente desejo era dedicar-me ao serviço dos tuberculosos. Entre vós deve haver alguém dos que nessa occasião me ajudaram a estudar o assumpto. Mas então surgiram mil difficuldades e a ideia não estava bastante vulgarisada para eu poder, como faço hoje, dirigir-me a vós com o fim de levar a bem este meu fundo empenho. A situação de hoje é differente. A experiência está feita, e em grande, e em quasi todos os paizes civilisados; com certesa sei que o nosso seguirá a sua bizarra tradição de bemfazejo e o exemplo dos demais. Não precisando traçar o horrendo quadro da mais mortífera e da mais frequente de todas as doenças, porque todos teem de certo sentido bem perto a sua lutuosa passagem, simplesmente direi que vos reuni hoje aqui para fundarmos uma associação, em que quereria ver entrar todos os portuguezes e a que chamarei Assistência nacional aos tuberculosos.
O meu folhetim procurou ser um reflexo das palavras piedosas da rainha, e da sua constante preocupação de promover e praticar o Bem. Foi publicado no jornal O Popular, de 31 de julho d'aquelle anno, e reimpresso no mesmo jornal em 6 de junho de 1900. E' agora estampado em separata como homenagem á rainha e ao favor publico com que foi recebido.

O Sonho da Rainha
A rainha era gentil e bella e tinha nos lábios um sorriso doce, de uma doçura vagamente triste, como de quem comprehende os grandes dramas da miséria humana. E de vez em quando isolava-se no seu castello da montanha e afundava o olhar melancólico num horisonte sem fim, que abrangia o mar immenso. E as brumas da noite vinham poisar nos torreões do seu castello como um pensamento sombrio, que tornava ainda mais scismadora a alma da linda rainha. E os cortezãos, por distrail-a, diziam-lhe: - Senhora, sois nova e bella, vindes do mais alegre paiz do mundo; por que haveis de parecer sempre triste? E a rainha respondia com um sorriso doce, de uma doçura vagamente torturada, como de quem comprehende os grandes dramas da miséria humana.
 - Senhora, volviam os cortezãos por conseguir o seu propósito: sois de um paiz de cavalleiros e paladinos, deveis saber a historia de Roland, que morreu por traição na emboscada de Roncevalles: dignai-vos contar-nol-a, senhora. Roland, segundo a tradição dos séculos, era esvelto como vós e o seu caracter tão leal e dedicado como o vosso. Fallai-nos d’esse bom tempo de Carlos Magno, que subjugou os povos da Aquitania e conquistou a Catalunha aos sarracenos. Decerto ouvistes ler, nos serões da meninice, a Canção de Roland: dignae-vos, senhora, recordar perante nós os feitos cavalheirescos da vossa pátria. E a rainha, com um sorriso maguado, respondia: - Na emboscada de Roncevalles morreu apenas um troço do exercito de Carlos Magno, confiado ao nobre Roland. Mas deveis saber que ha emboscadas mais sanguinolentas do que essa: são as da morte que vae ceifando vidas em flor, de creanças e donzellas, todos os dias, num Roncevalles eterno. - Affastai do vosso espirito, senhora, esses pensamentos tristes, que são como as brumas do mar quando envolvem o vosso castello alcantilado. Todos lá fora dirão:
  • Como a rainha é feliz n'aquella formosa montanha, em cujo bosque as aves cantam e o sol depõe os seus primeiros beijos de luz! E comtudo, senhora, vós pareceis viver constantemente num sonho dolorido, que não nos é dado perscrutar.
 - Sonho ou realidade, eu sinto cair em torno de mim as ultimas folhas do outono e oiço uma canção, que não é a de Roland, mas de Millevoye. - Qual, senhora nossa? Aquella que diz chorando:

Adeus, floresta querida!
Vestes luto por meu fim?
Como te cai folha a folha
a morte me segue assim.

 - Senhora, também deveis saber alguma historia do tempo dos francos salios, que teria especial encanto passando através dos vossos lábios. Contai-nos, que o não sabemos bem, como foi que o grande Clóvis, por amor da piedosa Clotilde, filha do rei dos burgundos, se fez christão na Gallia antiga. - Toda a historia do passado é igual a um monumento de pedra, que recorda os mortos e pode estimular os vivos. Mas os príncipes devem ler mais no futuro que no passado, porque não ha dois momentos iguaes na historia dos povos, e o que hontem foi um problema sem resolução pode ser amanhã uma conquista do espirito humano». In Alberto Pimentel, O Sonho da Rainha, PQ9261P4636, Livraria Editora Guimarães, Libânio e Companhia, Lisboa, 1900.

Cortesia de EGuimarães/JDACT