De
acordo com o original.
«Numa grande reunião, realisada no
edifício do ministério do reino em 11 de junho de 1899, dissera Sua
Magestade a Rainha de Portugal, D. Maria Amélia de Orleans:
- Afflicta pelo que via nas casas pobres, nos hospitaes que visitava e ainda pelo que lia em innumeros requerimentos, em que a tisica apparecia sempre como a nota mais sombria, já ha muitos annos o meu ardente desejo era dedicar-me ao serviço dos tuberculosos. Entre vós deve haver alguém dos que nessa occasião me ajudaram a estudar o assumpto. Mas então surgiram mil difficuldades e a ideia não estava bastante vulgarisada para eu poder, como faço hoje, dirigir-me a vós com o fim de levar a bem este meu fundo empenho. A situação de hoje é differente. A experiência está feita, e em grande, e em quasi todos os paizes civilisados; com certesa sei que o nosso seguirá a sua bizarra tradição de bemfazejo e o exemplo dos demais. Não precisando traçar o horrendo quadro da mais mortífera e da mais frequente de todas as doenças, porque todos teem de certo sentido bem perto a sua lutuosa passagem, simplesmente direi que vos reuni hoje aqui para fundarmos uma associação, em que quereria ver entrar todos os portuguezes e a que chamarei Assistência nacional aos tuberculosos.
O meu folhetim procurou ser um reflexo
das palavras piedosas da rainha, e da sua constante preocupação de promover e praticar
o Bem. Foi publicado no jornal O Popular, de 31 de julho d'aquelle anno,
e reimpresso no mesmo jornal em 6 de junho de 1900. E' agora estampado em separata como homenagem á rainha e ao favor
publico com que foi recebido.
O Sonho da Rainha
A rainha era gentil e bella e tinha
nos lábios um sorriso doce, de uma doçura vagamente triste, como de quem comprehende
os grandes dramas da miséria humana. E de vez em quando isolava-se no seu castello
da montanha e afundava o olhar melancólico num horisonte sem fim, que abrangia
o mar immenso. E as brumas da noite vinham poisar nos torreões do seu castello como
um pensamento sombrio, que tornava ainda mais scismadora a alma da linda
rainha. E os cortezãos, por distrail-a, diziam-lhe: - Senhora, sois nova e bella,
vindes do mais alegre paiz do mundo; por
que haveis de parecer sempre triste? E a rainha respondia com um sorriso
doce, de uma doçura vagamente torturada, como de quem comprehende os grandes dramas
da miséria humana.
- Senhora, volviam os cortezãos por conseguir
o seu propósito: sois de um paiz de cavalleiros e paladinos, deveis saber a historia
de Roland, que morreu por traição na emboscada de Roncevalles: dignai-vos contar-nol-a,
senhora. Roland, segundo a tradição dos séculos, era esvelto como vós e o seu
caracter tão leal e dedicado como o vosso. Fallai-nos d’esse bom tempo de Carlos
Magno, que subjugou os povos da Aquitania e conquistou a Catalunha aos sarracenos.
Decerto ouvistes ler, nos serões da meninice, a Canção de Roland: dignae-vos,
senhora, recordar perante nós os feitos cavalheirescos da vossa pátria. E a rainha,
com um sorriso maguado, respondia: - Na emboscada de Roncevalles morreu apenas um
troço do exercito de Carlos Magno, confiado ao nobre Roland. Mas deveis saber que
ha emboscadas mais sanguinolentas do que essa: são as da morte que vae ceifando
vidas em flor, de creanças e donzellas, todos os dias, num Roncevalles eterno.
- Affastai do vosso espirito, senhora, esses pensamentos tristes, que são como as
brumas do mar quando envolvem o vosso castello alcantilado. Todos lá fora
dirão:
- Como a rainha é feliz n'aquella formosa montanha, em cujo bosque as aves cantam e o sol depõe os seus primeiros beijos de luz! E comtudo, senhora, vós pareceis viver constantemente num sonho dolorido, que não nos é dado perscrutar.
- Sonho ou realidade, eu sinto cair em torno de
mim as ultimas folhas do outono e oiço uma canção, que não é a de Roland, mas de
Millevoye. - Qual, senhora nossa?
Aquella que diz chorando:
Adeus, floresta querida!
Vestes luto por meu fim?
Como te cai folha a folha
a morte me segue assim.
- Senhora, também deveis saber alguma historia
do tempo dos francos salios, que teria especial encanto passando através dos
vossos lábios. Contai-nos, que o não sabemos bem, como foi que o grande Clóvis,
por amor da piedosa Clotilde, filha do rei dos burgundos, se fez christão na Gallia
antiga. - Toda a historia do passado é igual a um monumento de pedra, que recorda
os mortos e pode estimular os vivos. Mas os príncipes devem ler mais no futuro que
no passado, porque não ha dois momentos iguaes na historia dos povos, e o que
hontem foi um problema sem resolução pode ser amanhã uma conquista do espirito humano».
In
Alberto Pimentel, O Sonho da Rainha, PQ9261P4636, Livraria Editora Guimarães,
Libânio e Companhia, Lisboa, 1900.
Cortesia
de EGuimarães/JDACT