domingo, 28 de setembro de 2014

Oboé. Poesia no Domingo. Fernando Pessoa. «Alma abstrata e visual até aos ossos, atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo, refúgio das saudades de todos os deuses antigos, espírito humano da terra materna, flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva…»

jdact e wikipedia

Poesia
«Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
o ouvi, ouvia
uma outra voz
como que vindo
nos interstícios
do brando encanto
com que o teu canto
vinha até nós.

Ouvi-te e ouvi-a
no mesmo tempo
e diferentes
juntas cantar.
E a melodia
que não havia,
se agora a lembro,
faz-me chorar.

Foi tua voz
encantamento
que, sem querer,
nesse momento,
vago acordou
um ser qualquer
alheio a nós
que nos falou?


Não sei. Não cantes!
Deixa-me ouvir
qual o silêncio
que há a seguir
a tu cantares!

Ah, nada, nada!
Só os pesares
de ter ouvido,
de ter querido
ouvir para além
do que é o sentido
que uma voz tem.

Que anjo, ao ergueres
a tua voz,
sem o saberes
veio baixar
sobre esta terra
onde a alma erra
e com as asas
soprou as brasas
de ignoto lar?

Não cantes mais!
Quero o silêncio
para dormir
qualquer memória
da voz ouvida,
desentendida,
que foi perdida
por eu a ouvir…»
Poema de Fernando Pessoa, in ‘Poesia

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