«(…) Não se suicida, pois, a ditadura. Morre naturalmente de
senilidade, duma senilidade, duma senilidade precoce, que se seguiu
imediatamente ao nascimento. Obra dum velho, é, como a velhice, impotente e
frouxa. Morre de lazeira, nada mais. Que dure uma semana, um mês, isso nada
significa. Está moralmente morta. É quanto importa. A questão toda está agora
na sucessão do morto. Quem será o
herdeiro? Os velhos partidos,
naturalmente? Mas os velhos partidos estão julgados e condenados pela
opinião, e sobre tudo pelos próprios actos. O que significa qualquer deles no
poder, senão a repetição dos mesmos erros, das
mesmas tendências e dos mesmos homens? Ora a política é movimento e
novidade. Recuar dois anos ou quatro anos atrás não é política: é
simples arqueologia. Em Portugal é, sobretudo, paleontologia.
Se os velhos programas foram reprovados, e pateados os
velhos homens, será porventura uma solução política levá-los outra vez ao
poder? Para quê? Para os reprovar e patear de novo? Em tal caso, fôra então a política
um círculo vicioso sem significação, e a História uma sabatina banal e tediosa.
Mas
a História é movimento e progresso. Assim, pois, a história
contemporânea de Portugal, ou se há-de imobilizar, como a da China, ou sair dos
velhos partidos, buscando horizontes novos, como convém a um povo que não
condescende benevolamente com a morte que o invade.
Um Fonte, um Loulé, um bispo de Viseu, serão sempre, dadas
as prisões partidárias que os ligam, a idade que contam, e a incapacidade de
renovação intelectual que os caracteriza, serão sempre o mesmo bispo de Viseu,
o mesmo Fontes, o mesmo Loulé. Tudo isto está visto e sabido. Não vale a pena
recomeçar a Regeneração ou o Movimento de Janeiro. Logo, a crise
excede os velhos partidos constitucionais. Vai além do que eles podem e sabem. A
política tradicional, reduzida ao absurdo pelos factos, não está à altura das
exigências da situação. Mas pergunta-se: não
poderão surgir novos partidos dentro do Constitucionalismo? Novos
grupos, podem: novos partidos, é impossível. Guerrilhas, certamente: exércitos,
de modo algum. E porque não podem?
Porque é exactamente o Constitucionalismo que os torna a
eles, a esses velhos partidos, absolutamente impotentes. Porque é a contradição
ingénita do sistema que esteriliza e anula os homens. Porque é a organização
monárquica, com as suas peias, as suas exigências, as suas despesas, que reduz
a nada a inteligência administrativa e a habilidade política da Regeneração,
como põe em cheque o patriotismo sincero e a boa vontade popular dos homens de
Janeiro. Dentro deste círculo moral e nesta atmosfera miasmática, que poderá ser um novo partido
constitucional? Para ele serão as mesmas exigências duma política de
contradição, a que se votará à nascença. Encontrará os mesmos prejuízos, que a
sua origem o obrigará a respeitar. Será tão incapaz, tão ininteligente e tão
corrupto como os seus antecessores». In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de
Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.
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