A primazia portuguesa nos Descobrimentos é hoje aceite sem reservas.
Sempre foi assim?
«(…) Mais tarde, os Portugueses voltaram a invocar os direitos históricos decorrentes das
viagens de Diogo Cão, aquando da disputa colonial sobre o rio Zaire e a região circundante.
O século XIX marcou o triunfo do norte da Europa industrializada, sobretudo a
Inglaterra, sobre as antigas potências do sul, como Portugal e Espanha, cuja
imagem de prosperidade e riqueza estava agora transformada em sinónimo de
pobreza e obscurantismo. Era no norte e nos Estados Unidos da América que se
encontravam os paradigmas do progresso, da racionalidade e da ciência. Este
ambiente mental afectava inevitavelmente o estudo da História. No que toca aos
Descobrimentos, espalhou-se a ideia de que o desenvolvimento da ciência
náutica, da cartografia ou da construção naval, que permitira aos
Portugueses o avanço no Atlântico, tivera certamente origem estrangeira. Um dos
casos mais flagrantes deste preconceito envolvia a figura de Martim Behaim
(1459-1507), um mercador alemão que
viveu em Lisboa e a quem foi atribuída, durante muito tempo, a introdução em
Portugal dos conhecimentos teóricos e instrumentos náuticos que permitiram o
sucesso das viagens de descobrimento. O célebre geógrafo e naturalista
Alexander von Humboldt (1769-1859) concedeu crédito a esta
ideia, e o peso da sua autoridade e prestígio contribuiu decisivamente para a
sua divulgação. Só no século XX foi
possível desmontar os erros e falácias desta e de outras noções, nomeadamente
com os trabalhos de Luciano Pereira Silva, Joaquim Bensaúde e Luís de
Albuquerque, entre outros. O estudo destas temáticas conheceu um
formidável avanço, quer pela publicação de mapas, cartas e outros documentos,
quer pelo trabalho de investigação, em bases sólidas e fiáveis, de várias
gerações de historiadores, em Portugal e além-fronteiras.
Importa referir, contudo, que, como seria de esperar, também se verificaram
erros no sentido oposto, pela mão de autores portugueses: teses e obras a defender
ideias de credibilidade duvidosa e sem sustentação documental, meras
especulações elevadas à categoria de verdades históricas e destinadas, muitas
vezes, apenas a satisfazer o ego nacional e um discutível sentido de
patriotismo. Que os Portugueses teriam chegado ao continente americano muito
antes de Colombo, que teriam conhecimentos náuticos e cartográficos avançados
desde o reinado do rei Dinis I ou que o infante Henrique disporia de
informações concretas e actualizadas sobre a Índia, geralmente em articulação
com a fantasiosa Escola de Sagres,
são apenas alguns exemplos mais conhecidos e que tiveram eco há algumas décadas
quando, uma vez mais, a história da presença portuguesa além-mar voltou a
servir objectivos políticos e que hoje possuem uma expressão meramente
residual.
Como foi feita a aprendizagem da ciência náutica?
Uma das características mais importantes dos Descobrimentos do século XV
foi o seu carácter experimental, prático e utilitário. Não é necessário
procurar qualquer Escola de Sagres
para reconhecer o valor dos navegadores portugueses, muito pelo contrário: a
capacidade de encontrar soluções para os problemas que surgiam a cada momento e
de adaptar, improvisar e resolver questões concretas apenas aumenta o seu
mérito e explica, aliás, o seu sucesso. Apenas uma pequena parte do
manancial de conhecimento náutico da Europa medieval era útil na exploração do
Atlântico. A tradição mediterrânica, velha de muitos séculos, estava adaptada à
navegação costeira, típica de um lago
como o Mediterrâneo, mas era insuficiente para navegar em alto-mar, sem vista
de terra. Os conhecimentos teóricos já existiam na Europa, como se vê nos
tratados medievais de Astronomia; mas faltava introduzi-los e adaptá-los à navegação,
com instrumentos adequados às rotinas práticas dos pilotos e dos marinheiros. E porque foram os Portugueses a fazê-lo?
Porque foram os primeiros a confrontar-se com os problemas técnicos que o exigiam».
In
Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque foi
Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa,
2013, ISBN 978-989-626-498-7.
Cortesia de E. dos Livros/JDACT