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A
Voz das Coisas
«A
voz das coisas que um queixume exala,
eco
distante, soluçar profundo,
a
voz de tudo, que de tudo fala,
qual
voz dum sonho que outro sonho embala,
a
voz que se ouve nos confins do mundo!
Ouvir
as nuvens, pelo ar troando
milhões
de pragas, num rugir cruento,
a
voz dos ramos a cantar bailando
e
as folhas secas, a bailar, cantando
ao
som da flauta mágica do vento.
A
voz das fontes a cantar baixinho,
regatos
brandos, num palrar incerto,
búzios
de barro presos a um moinho,
choupos
gigantes postos no caminho
e
areias tristes de qualquer deserto.
Ouvir
as queixas da montanha enorme,
a
voz do raio recortando o ar,
da
rocha virgem, que sem manto dorme,
das
ondas bravas, sobre o mar disforme,
berço
que embala até a luz do luar.
A
voz das coisas, que parecem mudas,
mas
que um mistério manda os sons á flux;
a
voz das pedras que eu julguei sisudas,
como
a figueira, aonde o falso Judas
spiou
o crime de vender Jesus.
Dum
velho arado, que sulcou ligeiro,
brejos
de mato, campos e devesas,
da
cinza fria que já foi braseiro,
dum
triste lenho, que era um castanheiro,
e
posto em cruz ouviu milhões de rezas.
Tudo
o que fala aquela voz distinta,
tornar
em verso, que é ilusão cruel!...
Mesmo
que a forma fosse a mais sucinta,
nem
o mar todo, transformado em tinta,
e
os astros d’oiro em rolos de papel!
Poema de Frederico Brito, in ‘Terra
Brava’
In
J. Frederico Brito, Terra Brava, Versos, Empresa Nacional de Publicidade,
Lisboa, 1932.
Cortesia
ENPublicidade/JDACT