segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Uma História do Paraíso. O Jardim das Delícias. Jean Delumeau. «Trata-se, antes do mais, de um jardim. A palavra persa antiga ‘apiri-daeza’ significava um pomar rodeado de um muro. O hebraico antigo adoptou-o sob a forma ‘pardés’. Depois os Setenta traduziram por ‘paradeisos’, ao mesmo tempo ‘pardés’»

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A amálgama das tradições: de Moisés e Homero a S. Tomás de Aquino
«O paraíso foi em primeiro lugar e durante muito tempo o paraíso terrestre. Na maior parte dos autores da época patrística, até ao século VI ou mesmo VIII da nossa era, a palavra paraíso sem outro epíteto designa essencialmente o jardim das delícias, onde viveram por breve instante Adão e Eva. Durante numerosos séculos, cerca de três milénios, os judeus e depois deles os cristãos, com poucas excepções, não puseram em dúvida o carácter histórico da narrativa do Génesis relativo ao jardim maravilhoso que Deus tinha feito surgir no Éden,

[…] um rio saia do Éden para irrigar o jardim; dali se repartia para formar quatro braços. Um chamava-se Píson (o jorrante): é ele que torneia todo o país de Hawila, onde se encontra o ouro, e o ouro desta terra é excelente, assim como o bdélio e a pedra de ónix. O segundo rio chamava-se Guíon (o saltitante): é ele que torneia a terra de Kush. O terceiro chamava-se Tigre, corre a oriente de Assur. O quarto rio era o Eufrates. O Senhor Deus tomou o homem e instalou-o no jardim do Éden para cultivar o solo e guardá-lo.

Veremos pelo caminho que as precisões geográficas dadas pelo Génesis Suscitaram, em particular nos séculos XVI e XVII, uma imensa literatura e mobilizaram tesouros de erudição. Mas, desde a época da antiga aliança, a evocação paradisíaca proposta pelo Génesis foi confirmada, precisada e enriquecida por diversos outros textos. Em Isaías, é dito que (Deus) torna o seu deserto semelhante a um Éden e a sua estepe semelhante a um jardim do Senhor. Ali se achará entusiasmo e júbilo, acção de graças e som de música. A profecia de Ezequiel da ruína do príncipe de Tiro, herói castigado por causa do seu orgulho, evoca por seu turno o jardim de Deus, mas rodeando-o de um muro de pedras preciosas:

Tu, que és cheio de sabedoria, perfeito na beleza,
tu estavas no Éden, no jardim de Deus,
rodeado de muros de pedras preciosas:
sardónica, topázio e jaspe,
crisólita, berilo e ónix,
lazulite, carbúnculo e esmeralda [...]
Tu estavas sobre a montanha santa de Deus.

Uma outra profecia de Ezequiel faz ver aos judeus exilados na Babilónia o templo restaurado, donde sairá uma nova fonte. Esta manifestará o poder vivificante de Deus: À beira da torrente, nas duas margens, brotarão todas as espécies de árvores de fruto; a sua folhagem não secará e o seus frutos não se esgotarão; dá-los-ão novos todos os meses porque a água da torrente sai do santuário. Os seus frutos servirão de alimento e as suas folhas de remédio. Ezequiel retoma pois aqui a imagem do jardim do Éden, maravilhosamente irrigado, onde a árvore da vida desabrochava no meio de uma vegetação luxuriante.
Deste modo, na época do cativeiro da Babilónia (século VI a. C.), os elementos constituintes do paraíso terrestre bíblico encontram-se situados. Trata-se, antes do mais, de um jardim. A palavra persa antiga apiri-daeza significava um pomar rodeado de um muro. O hebraico antigo adoptou-o sob a forma pardés. Depois os Setenta traduziram por paradeisos, ao mesmo tempo pardés e o termo hebraico mais clássico para designar um jardim, gan. Nesse jardim, por sua vez plantado no meio de um campo feliz (eden), tudo era doçura, sabor e perfume. O homem e a mulher viviam ali em harmonia com a natureza e a água comia abundante, felicidade suprema sonhada por gentes que a aridez desértica ameaçava incessantemente. A sua existência, que deveria ter sido imortal, desenrolava-se na alegria e, assegura-nos Isaías, ao som da música». In Jean Delumeau, 1992, Uma História do Paraíso, O Jardim das Delícias, Terramar Editores, Lisboa, 1994, ISBN 972-710-059-7.

Cortesia de Terramar/JDACT