A
amálgama das tradições: de Moisés e Homero a S. Tomás de Aquino
«O
paraíso foi em primeiro lugar e durante muito tempo o paraíso terrestre. Na
maior parte dos autores da época patrística, até ao século VI ou mesmo VIII da
nossa era, a palavra paraíso sem
outro epíteto designa essencialmente o jardim das delícias, onde viveram
por breve instante Adão e Eva. Durante numerosos séculos, cerca de três
milénios, os judeus e depois deles os cristãos, com poucas excepções, não
puseram em dúvida o carácter histórico da narrativa do Génesis relativo ao jardim maravilhoso que Deus tinha feito surgir
no Éden,
[…] um rio saia do Éden para irrigar o
jardim; dali se repartia para formar quatro braços. Um chamava-se Píson (o jorrante):
é ele que torneia todo o país de Hawila, onde se encontra o ouro, e o ouro
desta terra é excelente, assim como o bdélio e a pedra de ónix. O segundo rio
chamava-se Guíon (o saltitante): é ele que torneia a terra de Kush. O terceiro
chamava-se Tigre, corre a oriente de Assur. O quarto rio era o Eufrates. O
Senhor Deus tomou o homem e instalou-o no jardim do Éden para cultivar o solo e
guardá-lo.
Veremos
pelo caminho que as precisões geográficas dadas pelo Génesis Suscitaram, em particular nos séculos XVI e XVII, uma
imensa literatura e mobilizaram tesouros de erudição. Mas, desde a época da
antiga aliança, a evocação paradisíaca proposta pelo Génesis foi confirmada, precisada e enriquecida por diversos outros
textos. Em Isaías, é dito que (Deus)
torna o seu deserto semelhante a um Éden e a sua estepe semelhante a um jardim
do Senhor. Ali se achará entusiasmo e júbilo, acção de graças e som de música.
A profecia de Ezequiel da ruína do príncipe de Tiro, herói castigado por causa
do seu orgulho, evoca por seu turno o jardim de Deus, mas rodeando-o de um muro
de pedras preciosas:
Tu, que és cheio de sabedoria, perfeito
na beleza,
tu estavas no Éden, no jardim de Deus,
rodeado de muros de pedras preciosas:
sardónica, topázio e jaspe,
crisólita, berilo e ónix,
lazulite, carbúnculo e esmeralda [...]
Tu estavas sobre a montanha santa de
Deus.
Uma
outra profecia de Ezequiel faz ver aos judeus exilados na Babilónia o templo
restaurado, donde sairá uma nova fonte. Esta manifestará o poder vivificante de
Deus: À beira da torrente, nas duas margens,
brotarão todas as espécies de árvores de fruto; a sua folhagem não secará e o
seus frutos não se esgotarão; dá-los-ão novos todos os meses porque a água da
torrente sai do santuário. Os seus frutos servirão de alimento e as suas folhas
de remédio. Ezequiel retoma pois aqui a imagem do jardim do Éden, maravilhosamente
irrigado, onde a árvore da vida
desabrochava no meio de uma vegetação luxuriante.
Deste
modo, na época do cativeiro da Babilónia (século VI a. C.), os elementos
constituintes do paraíso terrestre bíblico encontram-se situados. Trata-se,
antes do mais, de um jardim. A palavra persa antiga apiri-daeza significava
um pomar rodeado de um muro. O hebraico antigo adoptou-o sob a forma pardés. Depois os Setenta traduziram por
paradeisos, ao mesmo tempo pardés e o termo hebraico mais clássico
para designar um jardim, gan. Nesse
jardim, por sua vez plantado no meio de um campo feliz (eden), tudo era doçura, sabor e perfume. O homem e a mulher viviam
ali em harmonia com a natureza e a água comia abundante, felicidade suprema
sonhada por gentes que a aridez desértica ameaçava incessantemente. A sua
existência, que deveria ter sido imortal, desenrolava-se na alegria e,
assegura-nos Isaías, ao som da música».
In
Jean Delumeau, 1992, Uma História do Paraíso, O Jardim das Delícias, Terramar
Editores, Lisboa, 1994, ISBN 972-710-059-7.
Cortesia
de Terramar/JDACT