Casamento
«(…) Chegara a hora de ela saber a verdade. Ninguém pode ficar
indiferente perante a morte de nove mil homens! E confirmou aquele número
terrível com um aceno de cabeça. Tinham morrido nove mil homens porque a rainha
Isabel quisera impressionar o mundo com o poder da Espanha e enviara uma armada
ridiculamente grande. Tinham morrido nove mil homens, porque Filipe chegara mais
de um mês atrasado e depois não suportara a ideia da partida da irmã. Tinham
morrido nove mil homens porque o tempo invernoso piorara tanto que era
impossível os navios zarparem. E muitos mais podiam ainda morrer. - Que posso dizer? Lamento tanto.
Se ao menos... Eu devia ter tento na língua, mas não passo de um idiota. Vós
não podíeis fazer nada, mas o arquiduque tem de ajudar. - Pegou-lhe na mão. -
Querida menina, não vos devia ter sobrecarregado com isto. Ide e preocupai-vos
com o que haveis de vestir para o baile desta noite. Estaria zangado com ela? Faria
troça? Estaria atentar
dizer-lhe que chegara a altura de Joana partilhar alguma responsabilidade?
Não tinha a certeza, mas pensou ser preferível supor que ele estava verdadeiramente
preocupado com a sua felicidade e lamentava ter deixado escapar aquelas
notícias tremendas. Joana escutou e concordou com todos os pontos que iriam
apresentar a Filipe. Disse-lhes que tinha a certeza de que seriam bem-sucedidos.
Despediu-se e ficou a vê-los sair da sala. Por momentos, ficou pensativa, pois
as coisas estavam sérias. Todavia, Filipe iria responder generosamente a todos
os seus pedidos por uma questão de honra.
Chamou Maria com o coração pesado e pediu-lhe que a acompanhasse à sala
de vestir para a ajudar a preparar-se para o baile que agora lhe parecia tão
deslocado. Contudo, todos os pensamentos desagradáveis se desvanecerem, à
medida que saiotes, camisetas, saias azuis, corpetes e, por fim, mangas eram
atados, abotoados, laçados ou cozidos no seu lugar. Quando todo o procedimento
chegou ao fim, Joana antecipava já, feliz, a alegria do banquete e do baile que
se lhe seguiria. Margarida chegara e iria juntar-se a eles, o que asseguraria uma
noite animada. A sua companhia era sempre tão divertida; sabia sempre as
melhores adivinhas e contava histórias divertidíssimas. Joana e Margarida
estavam sentadas juntas a descansar depois de dançarem, rodeadas por algumas
damas e cavalheiros da corte. Todos competiam entre si para contar a melhor
adivinha. - É a minha vez, insistiu Joana.
Brando é o campo,
negra é a semente,
o homem que semeia
é bom conhecedor.
Madame Halewyn, uma mulher duríssima que Filipe colocara recentemente
entre o pessoal de Joana, olhou-a desdenhosamente do alto do seu nariz bem
esculpido.
- Toda a gente sabe essa! - E, sem dar a ninguém a oportunidade de
adivinhar, disparou-lhe a sua própria adivinha.
Ao pé de um boi é pequeno,
ao pé de um ovo, ainda é mais pequeno.
É mais amargo que a bílis,
mas mais doce que uma alface.
Joana ficou totalmente perplexa e nada lhe ocorreu. A intenção da Halewyn
seria fazê-la passar por estúpida?
Margarida pegou na mão dela, rindo-se. - Porque dirá, ela adivinhas tão
difíceis quando sabe perfeitamente que nenhum de nós tem a inteligência
suficiente para adivinhar a resposta?
E onde é que as vai buscar?
Portanto, Halewyn, dizei-nos o que é essa tal coisa minúscula. - Acho que vós
fingis não saber, mas pensei que a princesa, tão culta, teria reconhecido uma
amêndoa imediatamente, cortou Halewyn. - Não, não, assim não vale, comentou
Margarida para o grupo, encorajando os seus protestos. - Era demasiada obscura
e nada inteligente. Seja como for, quero contar-vos uma história interessante sobre
aquele cavalheiro muito alto que está além, o magro com uma expressão séria. Seguiram-lhe
o olhar até o identificarem e Joana sussurrou: - É Francisco de Rojas, o
embaixador dos meus pais perante o vosso pai. - Exactamente, e a minha história
é sobre ele. Aproximaram-se mais uns dos outros, os homens sentados aos pés das
damas, alguns apoiados nos cotovelos no meio das longas saias, todos ansiosos
pela coscuvilhice. – Bem, quando ele veio como procurador dos nossos
casamentos, chegou cá usando roupas muito simples, totalmente inadequadas a uma
ocasião tão solene. Reza a história que um amigo lhe ofereceu uma bela jaqueta
e um manto de brocado. Imaginem um homem assim alto, de cabelos e olhos negros,
vestido de verde-azeitona, uma cor que faz realçar as suas belas feições. Mas
voltando à minha história; a melhor parte foi quando ambos tivemos de nos
deitar no leito matrimonial. - Margarida começou a rir-se e todos se
aproximaram ainda mais, não fossem perder uma palavra, enquanto alguns deitavam
outra olhadela ao embaixador alto e magro que naquela noite trajava de negro.
Ia ser uma das melhores histórias de Margarida e logo sobre alguém presente na
sala.
Bem, o vosso amigo tratou de ver que a roupa de fora se adequava à
ocasião, mas, Deus me valha, quando ele tirou o manto e a jaqueta para se
deitar no leito matrimonial, confesso-vos que quase rebentei a rir. Os
movimentos eram tão cautelosos que me prenderam a atenção e não pude deixar de
notar os calções, demasiado largos, e que não estavam bem atados ao gibão, o
que fazia com que a camiseta caísse por entre os laços. Eram metros e metros de
linho, parecia a vela de um barco, enquanto ele ia avançando para mim. Agradeci
a Deus o facto de a camiseta ser suficiente para proteger os meus olhos
inocentes de algo mais chocante que a sua roupa interior. Mordi o lábio com
força para não me rir e depois fechei os olhos para não ter de contemplar tal
visão. Riram-se sem parar, lançando olhares a Francisco, uma imagem vívida da
sua roupa interior rebelde implantada nas suas memórias. A voz irada do
responsável pela segurança dos cavalos durante a viagem de Espanha
interrompeu-lhes as gargalhadas. - Senhores, este comportamento é intolerável.
Em Espanha, nenhum cavalheiro seria tão descortês que se sentasse tão perto de
uma dama. E vós, conde, em vez de vos comportardes como estes..., estes flamengos,
deveríeis dar o exemplo das boas maneiras de uma corte. Que pensariam o rei e a
rainha de vos verem sentado sobre as saias da princesa Joana, com a vossa cabeça quase a tocar na sua real
pessoa? - Bem, seu novato, como
vos atreveis? - Atrevo-me porque defendo a honra da minha senhora! -
Assim sendo, ficarei muito satisfeito por dar a oportunidade de fazer
justamente isso!» In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial
Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.
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