Ainda no meio da vida, já estou cansado como se fosse
nos confins do seu entardecer. Tenho a cabeça branca e a alma devastada pela
fúria de todos os ciclones. In António
José de Almeida.
Memórias da tia Graça
«(…) Mas voltando à vida de
meus paes, estiveram quatro anos em Coimbra, até meu pae acabar o curso. Ali
foram muito felizes. Minha mãe sempre falava com muita saudade dessa epoca e lá
tiveram dois filhos, Maria Tereza e Joaquim, o primeiro filho não vingou, com grande
desgosto de minha mãe, que nunca se esquecia dele. Sofria horrores com os
partos, dificeis e dolorosos, excepto o meu, pois eu era muito pequenina, acho
que foi assim toda a vida, nunca dei grandes trabalhos a ninguem. Meu pae,
apezar de forte e voluntarioso, não tinha coragem para o sofrimento e chegava a
sair de casa até ao nascimento. Não conseguia enfrentar as dores dos outros. E
tanto que ele sofreu, coitado! Era generoso, ajudando os pobres, sobretudo os que
queriam estudar, pois dava muito valor aos estudos. Minha irmã Maria Tereza foi
desde pequenina linda e precoce, encantando toda a gente com a sua graça, fonte
de inspiração de varios poetas. Ainda conservo alguns poemas sobre ela, quando
tinha uns cinco ou seis anos. Nasceu em Coimbra, assim como meu irmão Joaquim,
tambem perfeito e forte. Eu nasci em 1894,
na Figueira, no mesmo ano em que meu pae acabou o curso, o conde de Aguim morreu
e minha mãe fez as pazes com meu avô Antonio Diogo. Minha mãe sofria muito com
os partos, lembro-me de a ouvir contar do seu martirio, ter filhos custa muito,
não havemos nós de amar as nossas mães!
As dores chegaram cedo na
madrugada. Ela acordara com uma impressão aguda nos rins e então deu-se conta
de que era o princípio. Ficara quieta a saboreá-las, ainda ligeiras e
espaçadas, vem aí o meu filho. Mas a
excitação depressa deu lugar ao terror que lhe acompanhara a gravidez, o terror
de que a criança não vingasse, como a outra que morrera porque o seu corpo a
expulsara no quinto mês, como excrescência indesejada. Lembrava-se do desgosto
que a arrepanhara ao ver de relance aquela coisa sanguinolenta que mais tarde
soube ser um rapaz. Chorara tanto por esse filho incompleto e pelos outros que
viessem, no medo de que as suas entranhas, misteriosas como um feitiço, apenas
fossem capazes de fabricar monstros... O médico, Daniel Mattos, grande amigo de
Júlio, assegurara-lhe que não, minha
querida Albertina, estas coisas acontecem, a Natureza é sábia, nós é que não
sabemos lê-la, a criança não tinha hipóteses, foi melhor assim, o próximo há-de
sair bem, sois um casal novo e saudável. O marido dormia na cama ao lado,
alheio ao que se passava, ela gostaria de o acordar e procurar nele apoio, mas
isto era assunto de mulher, tinha que aguentar sozinha, sofrer os espinhos que
o castigo divino lhe destinara, a vida era assim mesmo, pagavam-se preços pela
felicidade e ela era feliz desde que há ano e meio se casara. Jamais, nos seus
devaneios de menina, sonhara com ventura tão plena, tão alegre, a casa cheia de
amigos, de estudantes, de professores; a animação reinava à sua volta, festiva
e jovial, tratavam-na como rainha, faziam-lhe confidências de solidões,
contavam-lhe episódios burlescos da vida académica e pequenas lembranças
encantadoras de que só os estudantes se lembram. Alguns faziam-lhe versos,
chamando-lhe musa, mãe-terra e outros nomes surpreendentes e o marido, apesar
de ciumento, não se importava porque eles a respeitavam como a uma coisa sagrada;
ela adorava conviver, nascera com a vocação de amar e ser amada no meio da
espontaneidade risonha que a tornava tão amável.
Conhecera de perto os
problemas da política, esse mundo fascinante que lhe fora vedado em solteira -
até casar, a existência decorrera-lhe pacata nas aprendizagens da
domesticidade, nas leituras, nos bordados, nas obrigações religiosas, nas
amigas de colégio cujas conversas giravam em volta de pequenas minúcias
femininas, a política era assunto de homens e seu pai sempre velara para que se
mantivessem as distâncias. Porém, agora ouvia-os discorrer sobre as novas
ideias e os distúrbios ruidosos dos estudantes; os íntimos eram todos bem pensantes,
miguelistas, regeneradores, progressistas, mas falavam muito dos republicanos.
Acontecia ser condiscípulo de Júlio um dos mais assanhados, Afonso Costa de seu
nome, que, de parceria com outros, organizava comícios e bolsava violentos
discursos; Albertina soubera de um célebre estudante de Medicina, António
José de Almeida, preso pelos insultos ao monarca Carlos I; ela reflectia
muito nesses rapazes, que ódio haveria neles para se sujeitarem assim a
humilhações públicas, para ofenderem a
Deus e ao rei? Gostava muito de ouvir os homens falar, o espírito vivo
abria-se-lhe às grandes questões nacionais, que ideia essa de considerar as
mulheres umas tontas!... Não que ela quisesse ingerir-se como sempre fazia a
sogra, a sogra era especial, nunca vira senhora tão desassombrada e tão firme.
Albertina preferia compreender as coisas, como quando, meses atrás, se dera
aquela revolução republicana no Porto, com mortes e degredos, se uma mulher não
entendesse nada, os acontecimentos invulgares seriam considerados obra do
demónio, como dizia sua irmã Elvirinha, uma mulher não devia ser uma ilha,
apenas ligada ao continente por seu marido ou por seu pai». In Maria
Luísa Beltrão, Os Impetuosos, 1994, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN
972-23-1857-8.
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