Fundação da Ordem Jesuíta
«(…) Ele deixou os livros de lado e começou a imaginar e sonhar. Um
típico caso de sonhar acordado, uma
continuação na vida adulta do jogo imaginário infantil. Se deixarmos que este invada
o domínio físico, o resultado é uma neurose e uma alienação da vontade: o que é
real fica em segundo plano. À primeira vista, esse diagnóstico parece difícil
de ser aplicado ao fundador de uma Ordem tão activa. O mesmo ocorre em relação
a outros grandes místicos e criadores
de sociedades religiosas, todos aparentemente muito capacitados para
organizações. Acreditamos, no entanto, que todos fossem incapazes de resistir a
suas imaginações superactivas e, para eles, o impossível torna-se possível. O
mesmo autor também diz sobre o assunto: Quero
ressaltar o resultado óbvio da prática do misticismo por alguém possuidor de
uma inteligência brilhante. A mente fraca, entregue ao misticismo, encontra-se
em área perigosa, mas o místico inteligente representa um perigo muito maior,
pois seu intelecto trabalha em maior profundidade e amplitude. Quando o mito
assume o controle da realidade, através de uma inteligência activa, torna-se
mero fanatismo; uma infecção da vontade que sofre de um alargamento ou
distorção parcial. Ignácio de Loyola foi um exemplo típico desse misticismo activo e distorção da vontade. A transformação do cavaleiro-guerreiro em
fundador da Ordem mais militante da Igreja Romana foi muito lenta; haveria
muitos passos vacilantes antes dele encontrar sua verdadeira vocação.
Na primavera de 1522, ele deixou o castelo ancestral com
a ideia de se tornar um santo semelhante àqueles cujas façanhas edificantes
havia constatado naquele grande livro gótico. Além disso, segundo ele, a
própria Virgem lhe teria aparecido numa
noite, segurando nos braços o menino Jesus. Um
soldado desobediente e presunçoso, disse um de seus comandantes; levava uma vida desregrada em tudo que
tratasse de mulheres, jogos e duelos, acrescentou seu secretário Polanco.
Tudo isso foi relatado por um de seus filhos espirituais, R Rouquette, que
tentou de alguma maneira explicar e desculpar esse temperamento explosivo que,
posteriormente, se tornou ad majorem Dei gloriam (para a
glória suprema de Deus). Como é o caso de muitos heróis da Igreja Católica
Romana, era necessário um golpe físico violento para mudar sua personalidade.
Ele havia sido mensageiro do tesoureiro de Castilla até à desgraça do seu
chefe. Depois tornou-se cavaleiro sob as ordens do vice-rei de Navarra. Tendo vivido
tal qual um cortesão, o jovem começou a sua vida de soldado defendendo Pampeluna
(Pamplona) contra os franceses, comandados pelo conde de Foix.
O ferimento que decidiu
o futuro de sua vida foi-lhe infligido nessa ocasião. Com a perna quebrada por
um tiro, foi levado pelos franceses a seu irmão, Martin Garcia, no castelo de
Loyola, iniciando-se o martírio das cirurgias sem anestesia, pois o trabalho
não havia sido bem feito. Sua perna foi quebrada novamente e recolocada no
lugar. Apesar de tudo isso, Ignácio acabou ficando coxo. É compreensível
que apenas uma experiência como essa poderia causar-lhe um esgotamento nervoso.
O dom das lágrimas, o qual lhe foi,
então, outorgado em abundância (e que
seus biógrafos acreditam como um favor dos céus), pode ser o resultado de sua
natureza profundamente emocional, afectando-o mais e mais. Enquanto estava
deitado, sofrendo as dores do ferimento, seu único divertimento era a leitura
de A Vida de Cristo e A Vida dos Santos, os únicos livros que
encontrou no castelo. Praticamente iletrado e ainda afectado por aquele choque
terrível, a angústia da Paixão de Cristo e o martírio dos santos tiveram um
forte impacto sobre ele; essa obsessão levou o guerreiro aleijado ao caminho do
apostolado. Após uma confissão detalhada no monastério de Montserrat,
Ignácio tencionava ir a Jerusalém. A peste era comum em Barcelona e, como todo
o tráfego marítimo estava interrompido, teve de permanecer em Manresa por
aproximadamente um ano.
Passava o tempo em
orações, longos jejuns e auto-flagelação, praticando todas as formas de maceração.
Além disso, nunca perdia a chance de se apresentar diante do tribunal de
penitência, apesar de sua confissão em Montserrat ter aparentemente durado três
dias. Tal confissão minuciosa teria sido suficiente a um pecador menos
escrupuloso. Tudo isso descreve claramente o estado mental e nervoso desse
homem. Finalmente, ao se libertar da obsessão de pecado, decidiu que aquilo
era, nada mais nada menos, que um truque de satã, e devotou-se inteiramente às
ricas e variadas visões assaltavam sua mente conturbada. Foi por causa de uma visão, diz H. Boehmer, que ele começou a comer carne novamente. Uma série completa de
visões que lhe revelou os mistérios do dogma católico e o ajudou a vivê-lo verdadeiramente.
Dessa forma, ele medita sobre a Santíssima Trindade como sendo um instrumento
musical de três cordas:
- o mistério da criação do mundo a partir de alguma coisa nublada e a luz vinda de um raio de sol;
- a milagrosa vinda de Cristo na Eucaristia, como flashes de luz penetrando na água consagrada, quando o sacerdote a toma durante a oração;
- a natureza humana de Cristo e da Virgem Santíssima, sob a forma de um corpo branco deslumbrante;
- satã como uma forma sinuosa e cintilante, semelhante a uma imensidão de olhos brilhantes e misteriosos.
Não é este o começo da produção da imagem jesuítica conhecida?
Em Abril de 1527, a Inquisição (maldita) leva Ignácio à prisão para julgá-lo
por acusações de heresia. O inquérito examinou aqueles incidentes estranhos ocorridos entre seus devotos; as declarações excêntricas do acusado sobre o poder
excepcional que sua castidade lhe conferia, e sua teoria bizarra sobre a
diferença entre os pecados mortais e veniais. Essas teorias tinham afinidades assustadoras
com as teorias dos jesuítas casuístas do período seguinte. Libertado, mas
proibido de realizar reuniões, Ignácio partiu para Salamanca e logo deu início às
mesmas actividades. Suspeitas parecidas entre os inquisidores o levaram
novamente à prisão. A liberdade só lhe seria possível mediante a suspensão de
tal conduta. Assim foi; viajou a Paris para continuar seus estudos na
faculdade de Montaigu. Seus esforços para doutrinar seus colegas estudantes
dentro de seus métodos singulares criaram-lhe novos problemas com a Inquisição (maldita). Tornando-se mais prudente, passou a
se encontrar com apenas seis de seus amigos de faculdade. Dois dentre eles
viriam a se tornar recrutas profundamente estimados: Salmeron e Lainez. O
que teria ele de especial, que pudesse
atrair de forma tão poderosa jovens a um velho aluno? Talvez o seu
ideal e um certo charme, além de um
pequeno livro, na verdade um livrete que, independente de sua pequena dimensão,
tornou-se um dos livros de maior influência nos destinos da humanidade. Esse
livro foi editado tantas vezes que o número de cópias é desconhecido; também
foi objecto de mais de 400 comentários. É o livro guia dos jesuítas e, ao mesmo
tempo, o resumo do longo desenvolvimento pessoal do seu mestre: os Exercícios
Espirituais».
In Edmond Paris, Histoire secrète des jésuites, A História Secreta dos
Jesuítas, tradução de Josef Sued, 1997, Chick Publications, 21ª edição,
Fundação Biblioteca Nacional, 2000, ISBN 093-795-810-7.
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