Philosophari placet, sed pavcis…
«(…) Traduções em língua
vulgar fazem-se em toda a Europa culta até finais do século XVI, de que são
exemplo as versões francesas de Claude Seyssel, Étienne de la Boétie, Amyot e
Louys le Roy. Em língua castelhana, as de Diego Gracián de Alderete e em língua
portuguesa, as de Duarte de Resende, Damião de Góis, Diogo de Teive e António
Pinheiro. Não resistimos a referir, a este propósito, a importância das
descobertas de textos essenciais da Antiguidade clássica e o empenhamento e afã
dos primeiros humanistas na sua busca, Petrarca, Boccacio, Salutati, Poggio,
de quem se conhece a correspondência com os monges de Alcobaça, no
sentido da aquisição de exemplares existentes neste mosteiro. São os primeiros
humanistas italianos, empenhados na vida pública das suas cidades e na formação
integral dos concidadãos, que impõem ao mundo culto os padrões de uma educação
aristocrática. Os studia humanitatis deixam de limitar o seu
âmbito aos auctores medievais e abrem-se à literatura, à filosofia e até
à arte da Antiguidade Clássica. O novo curriculum, alargado à história,
à poesia, à ética e às artes da pintura, escultura, arquitectura e desenho,
figura já no Panepistemon de Angelo Poliziano. Intencionalmente,
a filosofia moral torna-se um traço característico da vida intelectual deste
período, de par com o conhecimento da história e do direito, disciplinas que
preparam para a vida activa. Na linha da tradição aristotélico-tomista, em
convergência com a doutrina platónica, e sob o signo do franciscanismo e do
scotismo, Salutati será o pregoeiro do ideal de vida activa e integrará com
Leonardo Bruni e Leon Battista Alberti a primeira geração do humanismo civil
italiano.
No humanismo renascentista, o saber clássico é essencialmente fruto da instituição
docente. Se alguns dos primeiros humanistas italianos, a começar por Petrarca,
não se encontram directamente ligados à docência, a segunda geração de
humanistas e os principais representantes do humanismo europeu são em grande
parte indissociáveis da história da pedagogia. São eles os autores dos
tratados pedagógicos desta época, subsidiários, quer do ponto de vista
estético, quer do ponto de vista doutrinal, dos ideais educativos do humanismo
greco-latino, que confluem com a ética cristã, numa interdependência e
complementaridade entre humanitas epietas, a exemplo do que já
acontecera com os autores da Patrística. Menção especial, neste sentido,
merece o opúsculo de S. Basílio Magno sobre a forma de ler os clássicos, que
Leonardo Bruni traduz para latim e dedica em 1405 a Coluccio Salutati. Este texto de S. Basílio, De
legendis antiquorum libris, é frequentemente citado pelos humanistas, o
que prova bem a orientação dada à leitura das obras da Antiguidade pagã. Entre
nós, Cataldo, o introdutor do Humanismo em Portugal, apresenta a
autoridade de S. Basílio, ao aconselhar a leitura dos escritores e poetas da
Antiguidade pagã para inteligência da
sacra página. Fá-lo em carta que dirige a Fernando Meneses, escrita em fins
de 1499 ou em Janeiro/Fevereiro de 1500, considerada o primeiro manifesto publicado
em Portugal, em defesa do latim humanístico contra a barbárie estilística do
latim medieval, na linha de Lorenzo Valia. Aliás os autores da Patrística
são ensinados nas escolas humanistas, como na de Guarino de Verona, considerado,
com Vittorino Feltre, modelo de educador. Figuram, a par dos clássicos, na ratio
studiorum proposta pelos tratadistas pedagógicos europeus e merecem ser
comentados e editados, desde o Quattrocento italiano, e
designadamente por Erasmo. Santo Agostinho, com Cícero e Séneca, moldou
a alma de Petrarca, o primeiro humanista. Além disso, a concordância entre a
doutrina de Cícero no De oratore e a de Santo Agostinho no De
doctrina christiana tomou-se pedra angular na definição de uma estética
retórica cristã, de que é expoente máximo, no século XVI, a obra de Erasmo, bem
como de uma oratória eclesiástica tridentina. Ilustrativa, neste particular, é
a Ecclesiasticae rhetoricae libri sex (Olissypone, 1576)
de frei Luís Granada». In Nair de Nazaré Castro Soares, Philosophari placet sed pavcis, Universidade
de Coimbra, Revista Hvmanitas, volume L, 1998.
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