sábado, 29 de novembro de 2014

Largada das Naus. História de Portugal (1385 – 1500). António Borges Coelho. «No movimento económico que impulsionava a sociedade portuguesa do início do século XV, sentimos duas dinâmicas principais: ‘a do mundo que vivia das rendas’; e ‘a do mundo que ganhava riqueza, rápida’»

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Armadas de socorro
«(…) Em Ceuta, os muçulmanos voltavam ao assalto, mas também eles viram os navios da segunda armada a aproximar-se. Começou a fuga dos cercadores. Só uma galé os foi recolher à praia de Almina. Os cercados, entre eles Gonçalo Velho, o povoador da ilha de S. Miguel, e Soeiro Costa, de Lagos, navegador henriquino, saíram fora a matar. Quando os infantes Henrique e João desembarcaram e avançaram para o lugar da peleja, já andavam judeus e mulheres e outra gente a roubar. Os portugueses capturaram 986 combatentes, fora os que os captores esconderam para fugir ao pagamento do quinto e aqueles que se entregaram depois. Viram uma mulher levar três mouros ante si.

Ideias sobre o significado da conquista
No século passado, a reflexão sobre os motivos que impulsionaram os portugueses à conquista de Ceuta proporcionou um debate fecundo que mobilizou historiadores como António Baião, David Lopes, Jaime Cortesão, Duarte Leite, Veiga Simões, Joaquim Bensaúde, António Sérgio e, na geração seguinte, Vitorino Magalhães Godinho. Não vou voltar ao painel das causas e das consequências, assinalarei tão só algumas linhas da génese da conquista de Ceuta, o mesmo é dizer do início da expansão marítima dos portugueses. Desde logo, os capitães que ocuparam Ceuta pertenciam à geração de Aljubarrota e à dos seus filhos. Há quem negue a evidência. Sigamos os nomes e as histórias contadas pela Crónica da Tomada de Ceuta. A ideia da conquista partiu de João Afonso Alenquer, ex-contador do exército de Nuno Álvares Pereira, combatente de Aljubarrota, vedor da fazenda e organizador financeiro da jornada. A resolução de a levar por diante saiu da reunião sigilosa do Conselho Régio, que decorreu nos Paços de Torres Vedras, na sala dianteira, junto à capela. Estiveram presentes os infantes Duarte, Pedro e Henrique e os velhos capitães de Aljubarrota e das lutas pela independência. Entre outros, o condestável Nuno Álvares Pereira, os Mestres das quatro Ordens Religiosas Militares, Gonçalo Vasques Coutinho, um capitão da batalha de Trancoso, Martim Afonso Melo, guarda-mor, e João Gomes Silva, alferes, ambos combatentes de Aljubarrota. No final da reunião, João Gomes Silva disse: Quanto eu, Senhor, não sei al que diga senão ruços além. O Conselho de Torres Vedras, onde luziam os cabelos brancos dos principais conselheiros, envolvia directamente, na tomada de Ceuta, a geração de Aljubarrota e, através dos infantes, a dos seus filhos.
Numa segunda linha de compreensão, os grupos dominantes e até o povo miúdo das cidades e vilas apoiaram a iniciativa, cada grupo a puxá-la para o campo dos seus interesses. Nenhum bispo participou na empresa, o que é obra, mas a Igreja será uma das forças que mais pugnará pela conservação da praça. A nobreza feudal estava disponível para qualquer aventura que aumentasse o seu poder e influência, mas pendia mais para o objectivo de Granada, pois poderia redesenhar a geografia política do espaço peninsular. O entusiasmo e o impulso decisivo pertenceram aos cavaleiros dos meios urbanos, particularmente aos de Lisboa, do Porto e das cidades e vilas marítimas, e ao entusiasmo dos infantes e da nova geração. Para os burgueses, a empresa abria os caminhos do mar, do comércio, do contrabando e da pilhagem. E evitaria que a mais alta nobreza, muita dela ligada pelo sangue à nobreza de Castela, se envolvesse em aventuras no país vizinho, que poriam em risco as conquistas e o equilíbrio alcançados pela revolução e as guerras que se lhe seguiram. No movimento económico que impulsionava a sociedade portuguesa do início do século XV, sentimos duas dinâmicas principais: a do mundo que vivia das rendas; e a do mundo que ganhava riqueza, rápida e espectacularmente, com o comércio dos produtos da pequena e média produção agrícola e artesanal, e a venda dos produtos armazenados nos celeiros dos grandes senhores e o corso. Os principais fidalgos e o alto clero lideravam o primeiro mundo; no segundo, campeavam os homens que exerciam o ofício da mercadoria. As águas fluíam compactas à superfície, mas as correntes seguiam o seu curso cruzando-se, fundindo-se, opondo-se. Os mercadores dos séculos XIV e XV não eram apenas os homens que compravam e vendiam a retalho, como indica qualquer dicionário. Podiam exercer ou acumular outras actividades, a de lavradores, de arrematantes das rendas do rei, do clero e dos nobres, de vedores da fazenda, de almoxarifes, de escrivães, de administradores de nau, mestres de navio, cambadores, fretadores, senhorio de naus, armadores de pesca, financeiros que usavam letras de câmbio no comércio inter-regional europeu». In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal (1385 – 1500), Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-21-2464-5.

Cortesia de Caminho/JDACT