quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A Mística do Instante. O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «”Estou cansado, é claro,/ porque, a certa altura, a gente tem de estar cansado./ De que estou cansado não sei:/ de nada me serviria sabê-lo/ pois o cansaço fica na mesma”. ‘Não sei sentir, não sei ser humano’, escrevia ainda Fernando Pessoa»

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A sociedade do cansaço
«(…) Todas as épocas têm as suas patologias e estas funcionam como indicadores que vão além do diagnóstico banal. As enfermidades dominantes mostram-nos o ponto de dor escondido, revelam comportamentos e compulsões, desocultam a vulnerabilidade que é a nossa, mas que raramente queremos ver. Ora, o grande combate dos séculos que nos precederam foi bacterial e viral. A invenção dos antibióticos e das vacinas, partindo do esforço imunológico, sem resolver tudo, torna, no entanto, esses problemas sanitários controlados. É verdade que de vez em quando irrompe o pânico de uma pandemia viral, mas essa não é a questão que condiciona mais profundamente os nossos quotidianos e práticas. O filósofo Byung-Chul Han, seguido atentamente em círculos cada vez mais amplos, defende que este começo do século XXI, do ponto de vista das patologias marcantes, é fundamentalmente neuronal. O sol negro da depressão, os transtornos de personalidade, as anomalias da atenção (seja por hiperactividade, seja por uma neurastenia paralisante), a síndrome galopante do desgaste ocupacional que nos faz sentir devorados e exauridos por dentro à maneira de uma terra queimada, definem o difícil panorama da década presente e das que virão. Estas enfermidades não são infecções, mas modalidades vulneráveis de existência, fragmentações da identidade, incapacidades de integrar e refazer a experiência do vivido. A verdade é que as nossas sociedades ocidentais estão a viver uma silenciosa mudança de paradigma: o excesso (de emoções, de informação, de expectativas, de solicitações...) está a atropelar a pessoa humana e a empurrá-la para um estado de fadiga, de onde é cada vez mais difícil retornar. O risco é o aprisionamento permanente nesse cansaço, como explicava profecticamente Fernando Pessoa: Estou cansado, é claro,/ porque, a certa altura, a gente tem de estar cansado./ De que estou cansado não sei:/ de nada me serviria sabê-lo/ pois o cansaço fica na mesma.

Combater a atrofia dos sentidos
Accende lumen sensibus, (Ilumina os sentidos), recitava uma antiga invocação litúrgica, não deixando dúvidas sobre o necessário envolvimento dos sentidos corporais na expressão crente. Os sentidos do nosso corpo abrem-nos à presença de Deus no instante do mundo. Em boa saúde, temos ao nosso dispor cinco sentidos (tacto, paladar, olfacto, visão e audição), mas a verdade é que não os aperfeiçoamos a todos devidamente, ou, pelo menos, não os temos desenvolvidos da mesma maneira. Podemos receber e transmitir informações tão diversas pelos sentidos, porque dispomos de um cérebro que elabora e dirige. Mas falta-nos uma educação dos sentidos que nos ensine a cuidar deles, a cultivá-los, a apurá-los. Não sei sentir, não sei ser humano, escrevia ainda Fernando Pessoa. E continuava: Senti de mais para poder continuar a sentir. De facto, o excesso de estimulação sensorial em que estamos mergulhados tem um efeito contrário. Não amplia a nossa capacidade de sentir, mas contamina-a com uma irremediável atrofia. Ah, se ao menos eu pudesse sentir!, é a proposição do desespero contemporâneo, que advém depois de se ter experimentado tudo, em vertigem e convulsão. Mas também a indiferença aos sentidos, que o cinismo induzido a dada altura da vida promove, não deixa de ser um menor instrumento de aniquilação. A pele não me ensinou nada, lamentava-se o poeta René Crevel em O meu corpo e eu. Este é um território onde a mística dos sentidos pode desempenhar um papel reconversor fulcral, porque nela, como explica Michel de Certeau, o corpo é informado. A pele ensina». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT