A sociedade do cansaço
«(…) Todas as épocas têm as suas patologias e estas funcionam
como indicadores que vão além do diagnóstico banal. As enfermidades dominantes
mostram-nos o ponto de dor escondido, revelam comportamentos e compulsões, desocultam
a vulnerabilidade que é a nossa, mas que raramente queremos ver. Ora, o grande
combate dos séculos que nos precederam foi bacterial e viral. A invenção dos
antibióticos e das vacinas, partindo do esforço imunológico, sem resolver tudo,
torna, no entanto, esses problemas sanitários controlados. É verdade que de vez
em quando irrompe o pânico de uma pandemia viral, mas essa não é a questão que condiciona
mais profundamente os nossos quotidianos e práticas. O filósofo Byung-Chul Han,
seguido atentamente em círculos cada vez mais amplos, defende que este começo do
século XXI, do ponto de vista das patologias marcantes, é fundamentalmente
neuronal. O sol negro da depressão, os transtornos de personalidade, as
anomalias da atenção (seja por hiperactividade, seja por uma neurastenia
paralisante), a síndrome galopante do desgaste ocupacional que nos faz sentir
devorados e exauridos por dentro à maneira de uma terra queimada, definem o
difícil panorama da década presente e das que virão. Estas enfermidades não são
infecções, mas modalidades vulneráveis de existência, fragmentações da
identidade, incapacidades de integrar e refazer a experiência do vivido. A
verdade é que as nossas sociedades ocidentais estão a viver uma silenciosa
mudança de paradigma: o excesso (de emoções, de informação, de expectativas, de
solicitações...) está a atropelar a pessoa humana e a empurrá-la para um estado
de fadiga, de onde é cada vez mais difícil retornar. O risco é o aprisionamento
permanente nesse cansaço, como explicava profecticamente Fernando Pessoa:
Estou
cansado, é claro,/ porque, a certa altura, a gente tem de estar cansado./ De
que estou cansado não sei:/ de nada me serviria sabê-lo/ pois o cansaço fica na
mesma.
Combater a atrofia dos sentidos
Accende lumen
sensibus, (Ilumina os sentidos),
recitava uma antiga invocação litúrgica, não deixando dúvidas sobre o
necessário envolvimento dos sentidos corporais na expressão crente. Os sentidos
do nosso corpo abrem-nos à presença de Deus no instante do mundo. Em boa saúde,
temos ao nosso dispor cinco sentidos (tacto, paladar, olfacto, visão e
audição), mas a verdade é que não os aperfeiçoamos a todos devidamente, ou,
pelo menos, não os temos desenvolvidos da mesma maneira. Podemos receber e
transmitir informações tão diversas pelos sentidos, porque dispomos de um
cérebro que elabora e dirige. Mas falta-nos uma educação dos sentidos que nos ensine
a cuidar deles, a cultivá-los, a apurá-los. Não
sei sentir, não sei ser humano, escrevia ainda Fernando Pessoa.
E continuava: Senti de mais para poder
continuar a sentir. De facto, o excesso de estimulação sensorial em que
estamos mergulhados tem um efeito contrário. Não amplia a nossa capacidade de
sentir, mas contamina-a com uma irremediável atrofia. Ah, se ao menos eu pudesse sentir!,
é a proposição do desespero contemporâneo, que advém depois de se ter
experimentado tudo, em vertigem e convulsão. Mas também a indiferença aos
sentidos, que o cinismo induzido a dada altura da vida promove, não deixa de
ser um menor instrumento de aniquilação. A
pele não me ensinou nada, lamentava-se o poeta René Crevel em O meu corpo e eu. Este é um
território onde a mística dos sentidos pode desempenhar um papel reconversor
fulcral, porque nela, como explica Michel de Certeau, o corpo é informado. A pele ensina». In José Tolentino Mendonça, A
Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente,
Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.
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