A época contemporânea. Introdução
Sob o olhar da história: da vida privada família à vida privada
individual (1820-1950)
«(…) O século XIX é geralmente considerado o século de ouro
da vida privada. O fecho da família sobre si própria; a modificação da planta
interior das casas, com a delimitação de áreas reservadas (para os criados,
quartos de dormir para o casal e para os filhos, aposentos destinados à higiene
pessoal, escadas de serviço); o gosto pelo conforto doméstico; o progresso da
consciência individual, são alguns dos sintomas do reforço da privatização, no século
do liberalismo, constituindo uma etapa decisiva na evolução dessa outra grande história
que é a da noção de intimidade e na qual aquela se integra. De um modo geral, a
maior parte dos autores tende a sublinhar, como consequência das formulações
políticas do século das luzes, a oposição entre o Estado e a sociedade, da qual
resulta a separação das esferas pública e privada. Esta última reforça-se no decurso
de oitocentos, sob uma concepção restritiva do Estado, se bem que este se venha
a constituir como garante dessa autonomia, fenómeno que acompanha a afirmação da
burguesia no contexto da progressiva democratização da sociedade e do
desenvolvimento do mercado económico concorrencial.
Em rigor, a vida privada define-se por oposição à vida pública,
identificando aquela que se passa em
particular, ou seja, distingue-se por aquilo que a separa dos órgãos
formais do aparelho político-administrativo do Estado e de tudo o que denuncia
uma relação com a coisa pública, sejam bens, valores ou o exercício de uma actividade
profissional. Deve-se a Benjamin Constant (1767-1830),
referência incontornável do pensamento liberal, a sua incorporação na ideologia
política que emergiu da Revolução Francesa e o atribuir-lhe valor instrumental no
quadro teórico e normativo da sociedade burguesa. Invocando princípios novos
decorrentes de uma cultura política assente na noção de liberdade, a vida
privada é considerada, por aquele influente sistematizador da doutrina liberal
com largo eco no triénio vintista, uma característica do homem moderno por oposição ao homem
antigo, empenhado nas cousas públicas.
Deste modo, o conceito de vida privada enquadra-se no discurso cultural e
político liberal, sendo associado à ideia de modernidade e de ruptura com o
passado, em particular, com a sociedade de Antigo Regime. É na vida privada que
o indivíduo experimenta o sentimento de independência, sendo entendida como refúgio e lugar por excelência da felicidade individual e colectiva.
Desde a Revolução Francesa à actualidade, o conceito de vida
privada tem vindo a ser objecto de uma profunda reflexão teórica que problematiza
o seu conteúdo, a delimitação das suas fronteiras e as zonas de interacção
relativamente ao espaço público, bem como as estruturas de sociabilidade que se
entrecruzam no seu seio entre outros aspectos. Para além do já referido Benjamin
Constant, Alexis Tocqueville (1805-1859), no século XIX, ou, já no século XX, Norbert
Elias (1897-1990), Jurgen Habermas e, mais recentemente, Richard Sennett,
Albert Hirschmann, Anthony Giddens e Jean-Claude Kaufmann, são alguns dos autores
que têm interrogado criticamente a lógica da separação dos espaços públicos e
privados e analisado os factores institucionais e ideológicos que condicionam o
respectivo movimento pendular ao longo do tempo. Porém, independentemente do
conteúdo que cada qual atribui ao conceito, todos os autores parecem coincidir
num ponto: a vida privada emerge na segunda metade do século XVIII, no
momento em que despontam os sistemas políticos democráticos que definem uma nova
categoria de cidadão, centrada no exercício de direitos cívicos e políticos,
bem como numa organização social formada, em princípio, por homens livres e
iguais. Todos os autores ainda admitem que é no decurso do século XIX, sob
o impulso da burguesia, que a vida privada tem o seu apogeu, sendo associada às
alegrias da intimidade familiar, irradiando progressivamente para os meios
populares». In JoséMattoso, História da Vida Privada em Portugal, A Época
Contemporânea, coordenação de Irene Vaquinhas, Círculo de Leitores e Temas e
Debates, 2011, ISBN 978-989-644-149-4.
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