O Povo Desaparecido
«(…) O meu piedoso avô explicava que esta pele solta e
plástica era uma sábia concessão de
Providência Toda-poderosa para lhe permitir comer mais num só festim do que
jamais algum homem tinha comido na história da humanidade. A sua vida de
caçador tornava de vital importância que ele pudesse armazenar no corpo grandes
reservas de alimento. O resultado era que o estômago, depois de ter comido até
os limites da sua capacidade, dava-a qualquer homem o aspecto duma mulher
grávida. Numa boa época de caça, a sua silhueta era como a dum Cupido de Rubens, rotunda à frente e
mais ainda atrás. Sim, era essa mais uma das características únicas desse pequeno
e original corpo bochimane. O seu traseiro era aquilo que a corcova é para
o camelo! Assim a natureza lhe permitia armazenar uma reserva de valiosas
gorduras e hidratos de carbono, contra os momentos de fome e de sede. Creio que
o primeiro termo científico que jamais aprendi foi o nome que os anatomistas
deram a este fenómeno do corpo bochimane: esteatopigia. Lembro-me
de uma noite, junto do lume, ouvir dizer ao meu avô e à mais velha das minhas
tias que, em época de penúria, o traseiro do Bochimane encolhia até se parecer muito
com qualquer outro, excepto pelas pregas acetinadas que apresentava no sítio
onde as nádegas se juntavam às pernas ágeis. Durante uma boa estação de caça,
porém, esticava tanto, que se podia pôr-lhe em cirna uma garrafa de conhaque e
um copo! Todos ríamos disto, não por troça, mas com afectuoso orgulho e espanto
por a nossa terra natal ter produzido um corpo humano tão excepcional.
Seja como for, o meu coração e a minha imaginação preocupavam-se
fortemente com este assunto da forma do Bochimane. Os Hotentotes, que se
pareciam muito com ele, não conseguiam, por muito que eu gostasse deles,
excitar o meu espírito da mesma forma. Eram demasiado grandes. O Bochimane era
como devia ser. Havia magia na sua constituição. Sempre que a minha mãe nos lia
uma história de fadas em que um homem baixo realizava maravilhas, logo a minha
imaginação o transformava num bochimane. Talvez que esta nossa vida, que começa
com a procura do homem pela criança e acaba como uma viagem feita pelo homem
para redescobrir a criança, precise duma imagem clara de algum homem-criança,
como o Bochimane, em que os dois estão firme e encantadoramente ligados,
para que os nossos corações confusos possam permanecer no centro da sua breve
rota de partida e regresso». In Laurens van der Post, The lost world of
the Kalahari, O Mundo Perdido de Calaári, edição Livros do Brasil, Lisboa.
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