segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Memórias de Agripina. Pierre Grimal. «… tomei a decisão de começar estas memórias. Tenho muitas recordações, conheço demasiados segredos para deixar que tudo isso pereça. E depois, quero justificar-me, dizer a minha verdade, prestar justiça…»

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«Esta noite, no final do terceiro dia dos Jogos Palatinos, começo a escrever o que será a minha história e a da minha família, e os meus olhos estão horrorizados. Britânico morreu. Morreu esta mesma noite, durante o jantar que marcava o encerramento dos jogos. Vi-o, sentado com os outros jovens e com as mulheres, bastante perto de mim. Pediu de beber. Não sei o que se passou, ao certo. Levou uma taça à boca, e depois rejeitou-a. Um servo, um novo que não conheço, acorreu com um jarro, deitou água na taça e Britânico, por fim, bebeu. Então, o seu corpo ficou de imediato completamente hirto. Pensei que se quisesse levantar, mas ele não concluiu o seu gesto. Voltou a cair, inerte e já inconsciente. Em torno dele, as pessoas deram a impressão de se apressarem. Um olhar de Nero, mais forte do que uma ordem, imobilizou toda a gente nos seus lugares. Dois dos servos pessoais de Britânico avançaram e, com o consentimento do príncipe, que lhes dirigiu um gesto, levantaram o que já era um cadáver. Ninguém ousava falar. Nero, por fim, rompeu o silêncio e lembrou que o seu irmão costumava ter crises de epilepsia, que então desmaiava, como esta noite, mas que não tardaria a voltar a si. A mesma doença, acrescentava ele, não impedira o seu pai, Cláudio, de viver até uma idade muito avançada. Vi então o seu olhar passar sobre mim, por um breve instante, e compreendi tudo. Eu sabia que Britânico estava morto. Nero jamais pensou que eu pudesse deixar-me enganar. E avisava-me. A alusão à morte de Cláudio era clara. Britânico também fora envenenado. Se eu matara o pai, não teria Nero o direito de fazer desaparecer o filho? A jogada era a mesma. Tomar ou conservar o poder, aquela omnipotência que pertencera a Cláudio, que pertencia agora a Nero e que eu, sua mãe, a quem ele a devia, podia disputar também agora.
O jantar terminou como se nada tivesse acontecido. Eu não queria mostrar que tinha compreendido, mas é provável que a expressão do meu rosto me tenha traído. Cometi igualmente o erro de olhar para Octávia que estava presente, como convém à esposa do príncipe. Ela mantivera-se impassível, sem deixar transparecer qualquer sentimento. Mas também ela, decerto, compreendera. Nero tinha visto o meu olhar. Terei eu, ao dirigir os meus olhos para ela deixado transparecer o temor que senti pela filha de Cláudio? Octávia era uma refém. Nero não hesitaria em fazê-la desaparecer, como fizera com o seu irmão. Perguntei, então, a mim mesma, que motivo teria para acrescentar um crime ao outro. Octávia não era para ele uma ameaça. Antes pelo contrário, ela era uma das razões que faziam dele um imperador legítimo, filho e genro de Cláudio. Não, Octávia era demasiado preciosa para ele a sacrificar. A menos que...? Mas não ousei ir mais longe nestes terríveis pensamentos. Todavia, a verdade impunha-se, o que eu estava a querer dizer era: a menos que uma outra paixão, que não a do poder, se apodere dele. Caberia a mim zelar para que isso não acontecesse.
Mas por quanto tempo poderei eu própria fazê-lo? Há já muitos anos que me sabia condenada a morrer, a morrer por ele. Como esquecer o dia em que Balbilo, o filho de Trasilo, que não era pior astrólogo do que o seu pai, me revelou, como um desafio, que Nero reinaria e que mataria a sua mãe? Respondi-lhe sem hesitar: Que me mate, desde que reine! Talvez estivesse próxima do momento em que a segunda parte da profecia se cumprirá. Na liteira que me conduzia a casa, perguntava a mim mesma: estaria eu, de facto, assim tão resignada como pretendia fazer parecer, há já mais de vinte anos? Estaria eu preparada para morrer? Mas, não haveria outra saída? Talvez os destinos não sejam implacáveis; talvez sejamos pouco hábeis para os interpretar. Os oráculos aparentemente mais evidentes deixam lugar para escapatórias.
Chegada a casa, e depois das servas terem terminado os mil cuidados que acompanham todos os dias o meu recolhimento, tomei a decisão de começar estas memórias. Tenho muitas recordações, conheço demasiados segredos para deixar que tudo isso pereça. E depois, quero justificar-me, dizer a minha verdade, prestar justiça aos que me rodearam ou cuja imagem acompanhou toda a minha existência, ouvir de novo as suas vozes. Sei que alguns fizeram nascer ódios violentos e que em Roma não se é meigo para com a sua recordação. Mas que tenho eu com o que pensam os outros, com os que não sabem, que jamais conheceram essas violências da alma, inseparáveis daquilo que somos, nós, a quem os deuses dão a tarefa de reinar! Tais arrebatamentos podem muito bem ser comprados ao preço da morte». In Pierre Grimal, Memórias de Agripina, Lyon Edições, Romances Históricos, 2000, ISBN 972-8461-51-8.

Cortesia Lyon E./JDACT