Uma Constante - a Cultura
«(…) Está por escrever ainda a memória que nos dê conta do que foi em
toda a sua extensão o percurso da acção cultural feito por Bento Caraça ao
longo de trinta anos, desde aquele distante 24 de Agosto de 1919 em que integrou os primeiros
corpos gerentes da Universidade Popular Portuguesa, nesse dia eleitos, até ao
último alento de vida, a partir do qual foi interrompida para sempre a
publicação da Biblioteca Cosmos. De todo esse imenso labor cultural (até
hoje tão pouco investigado com o pormenor que tanto merece, apesar de mais de
meio século já ter passado sobre a sua morte), queremos evocar aqui, embora
de relance, as fases essenciais desse percurso. Mas antes devemos sublinhar que
tal labor foi levado a cabo nas condições políticas, económicas, sociais e
culturais mais adversas, num tempo em que o nosso país contava com mais de 52%
de cidadãos maiores de 7 anos que não sabiam ler e a cultura, à boa maneira
nazi-fascista, era tratada por quantos usurpavam o poder, do topo à base do
aparelho do Estado, como um luxo e coisa mais que suspeita. Num tempo em que os
produtores de cultura e aqueles que procuravam difundi-la erem tidos como
perigosos agitadores, a quem era imperioso vigiar os passos. Bento
Caraça foi um desses (perigosos agitadores) e um dos primeiros que
pôs a nu a ignomínia que o analfabetismo representava para o nosso país. Fê-lo
com elevação e desassombro na sessão do MUD realizada em 30 de Novembro
de 1946, no salão d’A Voz do
Operário: Procuremos, portanto, no censo da população, aqueles que possuem ao menos
a instrução primária ou a frequentam ainda. Esses constituem apenas 19,5% da população
maior de 7 anos. Um índice mais expressivo ainda nos é dado pelo estudo do
grupo da população dos maiores de 20 anos. Num total de 4 milhões e 500 mil
maiores de 20 anos há apenas 630 mil que possuem instrução primária completa,
ou seja uma percentagem de l4%, o que nos dá a taxa de iletrados reais para a
casa dos 36%.
Conhecia como aos dedos da mão o estado a que tinham chegado a instrução
e a cultura no Portugal do segundo quartel do século XX, um dos períodos de
maior obscurantismo vividos pelo nosso povo. Conhecia-o, além do mais, por ter
feito parte das comissões oficiais já referidas atrás, nomeadamente daquela que
em 1928 foi incumbida do estudo das medidas
destinadas a extinguir o analfabetismo. Nada surpreende, pois, que tão
insistentemente tenha proclamado a inadiabilidade de todos para viverem o seu
partido em relação a este problema crucial, ser por uma viragem total no
sentido do nosso apetrechamento cultural e técnico, ou ser pelo prolongamento
do abismo de ignorância e obscurantismo em que se estava fazendo mergulhar o
povo português. A acção cultural realizada por Bento Caraça foi intensa e multifacetada,
mas talvez não seja limitativo dividi-la em três vectores principais, ainda que
correndo o risco de deixar na sombra outras intervenções, ignoradas ou ainda
mal conhecidas, entre as quais o projecto de uma revista, Litoral; a edição de um suplemento de O Diabo e ainda o lançamento de uma vasta colecção, Temas.
São três esses vectores principais: a Universidade Popular Portuguesa, as
várias conferências que proferiu ao longo dos anos e, por último, a Biblioteca
Cosmos. Na Universidade Popular Portuguesa irá ter uma intervenção relevante,
sobretudo a partir de Dezembro de 1928,
momento em que assumiu as funções de presidente do Conselho Administrativo. Mas
a sua chegada à Universidade Popular acontecera nove anos antes, em Agosto de 1919, quando foi eleito para os primeiros
corpos gerentes da instituição. Muito jovem ainda, recém-chegado ao Instituto
Superior de Comércio, Caraça subiu ao modesto 1.º andar da Rua Particular à Rua
Almeida e Sousa (onde a universidade Popular tinha a sua sede), pela mão
do seu antigo reitor do Liceu Pedro Nunes, A. J. Sá Oliveira e de A. A. Ferreira
Macedo, professor do mesmo liceu. Vogal efectivo do Conselho Administrativo,
pouco se conhece, no entanto, desta primeira passagem de Bento Caraça pela vida
quotidiana da UPP, nem as tarefas que teria a seu cargo, nem tão-pouco as suas
intervenções nas iniciativas por ela promovidas. Dessa época apenas nos ficou a
notícia de uma conferência que aí fez em 1922,
Comércio e Finânças, provavelmente
aquela com que iniciou o seu percurso de conferencista. Infelizmente, dela
restou somente o sumário, impresso em folha solta e encontrado no seu espólio».
In
Alberto Pedroso, Bento de Jesus Caraça, Semeador de Cultura e Cidadania.
Inéditos e dispersos, Campo das Letras Editores, Porto, colecção Cultura
Portuguesa, 2007, ISBN 978-989-625-128-4.
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