João Bermudes
«(…) Destes treze portugueses, escolhidos a primor, era Rodrigo de Lima
o chefe pouco mais que nominal, visto todos eles saírem pessoas de arreganho,
estrela, beta e pé calçado, para lá de toda e qualquer disciplina, incapazes de
aceitar ordens ou seguir conselhos se estavam em jogo as suas paixões ou
interesses. E iam, mais que tudo, em exploração da terra havida por sequaz da lei
de Cristo e fabulosamente avantajada em matéria de riqueza e de armas. Levavam,
para adjutório, com bem aprendida desculpa e acanhamento pela modéstia, um presente
de panos e de armas, que o outro, adrede aviado em Lisboa pelo rei Manuel I,
composto do que havia de raro em tapetes, jóias, livros impressos, obras de
arte, perdera-se nas bolandas em que andara a Esquadra pelo Mar Vermelho, mercê
da inépcia e cobardia de Lopo Soares, segundo testemunharam depois os próprios
nautas. A cada passo este punhado de homens se digladiava entre si, insofridos,
pouco tolerantes, conflituosos, bravos como eram do génio e inchados de
soberba. Aconteceu o padre Francisco Álvares, o verdadeiro mentor da missão,
que embora entrado nos anos não cedia a nenhum em rijeza e resistência, ter de
meter-se no meio e apartá-los à cacetada, havendo puxado do ferro uns para os
outros e acutilando-se.
Mestre João não representa o menor papel nestas farsadas com rixas e
destampatórios. Mal se dá por ele. O testemunho mais ostensivo que há da sua
presença é quando os vizinhos de uma aldeia, desconfiados com tais aves de
arribação, se postam em três outeiros à sua passagem e fazem chover sobre eles
um a granizada de pedras. Muitos ficam feridos e nesse rol está o Mestre. Para
cúmulo carregam-nos de algemas. Na manhã seguinte, Rodrigo de Lima, que ia à
frente obra de légua, ao voltar à retaguarda, desesperado e decidido a quebrar
lanças pelos seus, dá de cara com ele, coberto de sangue, o rosto num santo sudário,
mas fugido da prisão em que o haviam aferrolhado. Largara a mula em que
cavalgava, mas o principal é que salvara o rico corpinho. Este passo retrata o
homem. Sempre que os patrícios se mostram impetuosos ou temerários, ele reprime-se.
A sua inferiorização parece espontânea ao que é de reflectida. Em hora folgada,
do séquito do Preste lançam o cartel: - Não
há quem queira jogar as lutas? Apresenta-se o pintor Lázaro Andrade,
que em três tempos é, posto fora de combate com uma perna partida. Não há mais ninguém? Saem a
terreiro dois portugueses, o mulato Gaspar Dias, que blasonava de valentão, e
em menos de nada vai a terra com o braço desnocado. O segundo desiste,
comprovada a força de Golias do competidor. Mestre João, entretanto, nem se mexe.
O seu forte é a contenção. Devia observar e estudar. Observava usos e costumes
e ia aprendendo a língua da terra.
Ao cabo de seis anos, quando todos suspiram por se verem livres daquela
parvalheira, bárbara ao último ponto e inóspita, ele fica e deixa que os mais
se desunhem a correr para o mar no receio de perderem a frota que está à mercê
da monção. Fica com o pintor Lázaro Andrade em reféns, alega ele na sua
Memória. O padre Francisco Álvares é mudo neste particular. As próprias
circunstâncias em que se deu a despedida dos portugueses permitem conceber como
duvidosa esta afirmação do Mestre. Deve ter ficado na Abissínia porque quis. Também
a figura do pintor Lázaro Andrade se tolda de certo mistério e notícia
contraditória. Álvares dá-o a certa altura como tendo perdido a vista; mais tarde
menciona-o no número dos lutadores à beira da tenda do Preste. Estanceando
largos anos em terras do Negus, este, agradado de Mestre João, tê-lo-ia tomado
para padrinho do filho primogênito, precisamente aquele Claudius que havia de
renegar da lei de Roma. Que falta para satisfação dum homem simples, plebeu, é
provável que não dispondo na pátria
mais que da sombra dos caminhos?! Mas a Etiópia Alta era uma imensa
aringa em guerra, em que seria utópico buscar regalias estáveis. As tribos indómitas
das montanhas vinham em torrente e talavam tudo como as nuvens de gafanhotos
que periodicamente desabavam sobre as culturas, e da noite para o dia deixavam
os campos debulhados. Por isso mesmo carecia o hiperbólico império de capital e
este imperador, sempre de diadema no toutiço, de paços reais. A sala do trono,
simultaneamente refeitório e camarata, era uma tenda móvel a que faziam
plantão, além dos guerreiros de gládio em punho, quatro leões acorrentados e de
barbilho. Mesmo assim, os leões, se não eram empalhados, constituíam os únicos
troféus heráldicos daquela corte imperial. Do mesmo modo a chancelaria acampava
ao sabor dos caprichos, quando não era a maré dos inimigos que a tocava de
Herodes para Pilatos. Ora em dado momento viu-se o Preste assediado nas ambas
mais recessas do seu reino. Quem lhe
podia valer? Apenas, procurando bem, o rei cristianíssimo que mandava a
sua gente bater-se a todos os cambais em que perigava ou fosse susceptível de
acrescentamento a Fé cristã. Porque é
que o potentado magnânimo não havia de acudir então ao neto de Salomão e da
rainha de Sabá em perigo?» In Aquilino Ribeiro, Portugueses das Sete
Partidas, Viajantes, Aventureiros, Troca-tintas, 1950, Livraria Bertrand,
Lisboa, 1969.
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