quarta-feira, 26 de novembro de 2014

As Alegres Canções do Norte. Alberto Pimentel. «Abaixo dos mendigos, não ha mais ninguém. O epitheto de ‘canalha’ que lhes caberia, se lá os houvesse, applicam-n'o os minhotos á “rapaziada pequena” por ser a gente mais brava, e a que mais estraga com as suas brincadeiras e folguedos»

jdact

De acordo com o original

Génese das canções
«(…) Fora d’isto, as parreiras penduram os seus cachos impunemente sobre a leira do visinho ou até sobre a via publica; as searas não são limitadas nem por um muro, nem por um fosso, nem por uma tranqueira: é na retina do proprietário que reside o registo da sua propriedade. Elle conhece bem o que é seu, sem recorrer á Conservatória. As gallinhas saltam da horta de um para a horta de outro, vão debicar nas couves da visinhança. São enxotadas sem cólera, nem altercação, apenas com uma phrase mansa: Tira-te lá, franga; ide vos embora, pintos. Para accender o lume, pedem-se duas brasas a qualquer visinho: amanha se retribuirá o favor. Dir-se-ia tratar-se de uma communa ou, pelo menos, de uma cooperativa. Ás vezes, acaba-se o pão em casa, porque os cachopos comeram de mais ou a fornada rendeu menos. - Visinha, diz a mulher do lavrador, empreste-me uma broa, até que eu possa cozer. E logo, de uma casa para outra, passa a loira broa de milho, de côdea enfarinhada, que deixa brancas as mãos trigueiras. Abaixo dos habitantes remediados ha ainda uma classe: é a dos mendigos, que nem sempre são indigentes. Teem um casebre, teem um catre, mas falta-lhes a terra. No Minho, faltando a terra, falta tudo. Ordinariamente destinam dia certo da semana para o peditório; em geral, costumam fazel-o aos sabbados. A mendicidade quotidiana seria um empecilho ao trabalho, que é a funcção normal das povoações minhotas. Ao sabbado, os pobres já são esperados; os pobres de terra, os pobres de saúde, e os pobres de saúde e de terra. Já está de antemão preparado o que se lhes ha de dar; mettem-se uns cobres na algibeira, enchem-se de feijão duas ou trez malgas, parte-se uma broa em nacos eguaes. De modo que a presença dos mendigos nem surprehende, nem perturba. Pedem, recebem, e vão andando. É curioso que não se destaquem em grupos ou em indivíduos; pelo contrario, marcham em columna cerrada, direitos á mesma povoação, para o mesmo fim: esmolar.
Se pedem cantando, todos elles afinam pelo mesmo diapasão, um estribilho de classe, invocando sempre as almas do Purgatório. Raras vezes apparece um pedinte que traz harmonium a tiracollo, e que o faz ouvir para despertar a curiosidade dos bemfeitores. A mendicidade com o auxilio da musica continua a ser prerogativa dos cegos andantes. E o publico das aldeias desconfia sempre do mendigo que recorre ao harmonium ou a qualquer outro instrumento: não sendo cego, chama-lhe fistor, um pandego que não quer trabalhar. Na cohorte dos pobres avultam em numero as velhas esqueléticas, mumificadas, d’uma confusa apparencia insexual. São boccas inúteis, a que só a caridade pode matar a fome. Depois d’ellas, seguem-se em quantidade os aleijados incapazes de produzir trabalho; os aleijados vulgares, pouco espectaculosos, pois que os portadores de monstruosas deformidades reservam-se para as feiras, onde estão certos de encontrar maior publico e, portanto, melhor receita. Abaixo dos mendigos, não ha mais ninguém. A escoria social das grandes cidades, os que não trabalham, nem pedem, e apenas roubam; aquelles que julgam ver na fabrica uma exploração ao operário e na propriedade uma affronta ao proletariado; aquelles que assaltam, incendeiam ou demolem, não existem nas povoações ruraes do Minho.
O epitheto de canalha que lhes caberia, se lá os houvesse, applicam-n'o os minhotos á rapaziada pequena por ser a gente mais brava, e a que mais estraga com as suas brincadeiras e folguedos. Assim como o camponez não quer perder tempo com os pobres, que lhes não servem para nada, também o não quer perder com os defuntos, que já lhes não podem prestar serviço algum. Quando morre uma pessoa da família, o minhoto pensa apenas n’uma coisa: em enterral-a o mais depressa possível. Mas como a Morte pede lagrimas, e é preciso darlh’as, chama para casa, n’essas occasiões, certas mulheres que fazem profissão de chorar, e se chamam por isso carpideiras. Paga-lhes a tanto cada lagrima, e ellas choram na proporção da paga. Pelo que respeita ao destino da alma, o lavrador do Minho trata de recommendal-a aos padres, medeante maior ou menor espórtula, para que á força de latim, rezado ou cantado, se encarreguem de conduzil-a ao céo. É por isso que elle considera e respeita o padre; que o trata bem, lhe dá de comer e de beber á farta: quer tel-o de feição, para que lhe conquiste com empenho a bem-aventurança, cantando responsos ou rezando missas. Crê na acção conciliadora do padre e, portanto, a immortalidade da alma não o horroriza. Pelo que respeita ao cadáver propriamente dito, o lavrador do Minho não tem cuidados, nem pavores». In Alberto Pimentel, As Alegres Canções do Norte, Livraria Viúva Tavares Cardoso, Typographia Pinheiro, Lisboa, ML 2548P55A43X, 1905.

Cortesia de LVTCardoso/JDACT