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1948
Agosto, Campeã
«Ele e eu fomos dar um passeio de mãos dadas. Por toda a parte
havia cancelas, sem ar de cão de guarda. Caídas. Abertas. Gaiatas. No monte
apanhou-nos uma chuva de verão e tivemos de nos acolher debaixo das abas,
pretas, de um telhado. No regresso, havia um cheiro gostoso a terra molhada e o
vale tinha um ar renovado: todas as árvores se sacudiam ao vento, como
cachorros depois de um banho.
Agosto
Detesto visitas. Apetecia-me terrivelmente ser um coelho,
com uma tocazinha sem porta, por onde se entrasse por meio de uma palavra
mágica! Toda eu canto com o poeta: Et là
je bâtirai une Petite cabane faite de glaise et d'osier; Neuf rangs de fèvres
j'aurai, une ruche de miel. Et je vivrai seul dans la clarière où bourdonnent
les abeilles. Há só uma rectificação a fazer: detesto favas (eu aprecio…). Mas estou decidida a plantar
outra coisa. Plantarei ervilhas.
Agosto
Apaixono-me lenta e profundamente por V. Woolf. Acabei de
ler Dame au Miroir e uma
beleza inapreensível dança em mim, com uma oscilação fantasiosa de luar movido
pelo vento. Sinto-me exausta, pisada por milhares de coisas secretas que imprimem
passos de fogo no meu coração. Agitada por um frémito de sombras que se
afadigassem, de ramo em ramo, tornando-se impalpáveis, como pétalas há muito
fechadas num cofre, que uma indiscrição abriu.
Setembro
Apesar da chuvazinha, incessante, cor de ouro velho, o que
dói é o vaivém da serra, a sensação de um implacável destino. Tudo tem estado
dourado. Mas hoje o céu está pesado de angústia e chove. Não posso sair do
quarto, desta horrível casa, pintada de um verde sujo, de paredes rachadas,
cheias de pregos que sustentavam toda uma corte celestial e agora que ela foi
alugada me olham, estupidamente, cegos, absurdos e sem sentido. Em relação às
outras casas da aldeia, todas de chapéu de abas largas de lousa preta, é de
fazer chorar. Medonha, rígida, de granito lavado. O telhado sem beiral dá-lhe
um ar aparvalhado de criança a quem, por maldade, tivessem cortado a franja.
Setembro
Chove. Chove. Chove. Acabou-se para sempre a esperança do
sol. Tudo tem um ar de desesperançado, de braços caídos ao longo do corpo.
Apesar disso saí quando a chuva parou. Não havia árvores, nem caminhos. Só uma
névoa cinzenta, perfurada pelas buzinas dos pastores.
Setembro
As cartas que recebo dela são as minhas, enfeitadas de caracóis,
metidas em molduras com querubins e borboletas, pintadas de rutilante amarelo,
a fingir ouro.
Outubro
Acordei a tempo de ver o espreguiçar estremunhado da terra.
A relva, entre os castanheiros, tinha incríveis reflexos vermelhos e os montes
estavam tintos de violeta. O chiar dos carros de bois soava longe como um choro
rabugento de crianças, a quem tivessem tirado da cama demasiado cedo». In
Luísa Dacosta, Na Água do Tempo, Quimera Editores, Lisboa, 1992, ISBN
972-589-030-2.
Cortesia de QuimeraE./JDACT