Idade de oiro, Campos Elísios e Ilhas Afortunadas
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O sexto livro d’A Eneida oferece
por sua vez uma bela evocação dos Campos Elísios, habitados simultaneamente por
bem-aventurados definitivos como Anquises e por outros, a maoir parte, que
bebem da água do Letes antes de voltar a encontrar um corpo. Trata-se sem
dúvida de um paraíso terrestre situado nos infernos. Eneias chega com efeito aos espaços risonhos, às aprazíveis campinas
dos bosques afortunados: as moradas bem-aventuradas. Ali, um éter mais vasto
ilumina as planuras e reveste-as de púrpura; têm o seu sol e os seus astros.
uns exercitam-se em palestras relvadas, medem-se por recreio e lutam sobre a
areia fulva. Outros marcam com o pé o ritmo de um coração e entoam poemas [...]
num bosque perfumado de loureiros, de onde o rio Erídano, correndo -para
jusante, envia as suas águas potentes através da floresta. A mesma natureza
encantatória, mas situada desta feita aquém da morte, fora descrita por Homero
no canto VII d’A Odisseia. Trata-se,
na ilha dos Feácios, do jardim de Alcino, encerrado
num recinto: É sobretudo um pomar cujas altas ramadas, pereiras,
romãzeiras e macieiras de frutos de ouro e poderosas oliveiras e figueiras
domésticas produzem sem se cansarem nem se deterem os seus frutos; tanto no
Inverno como no Verão, todo o ano, dão fruto; o hálito do zéfiro, que sopra sem
repouso, faz rebentar tanto umas como as outras, produzir a pera nova ao lado
da pera velha, [...] o figo sobre o figo [...]. (As vinhas) bordejam as
platibandas da mais cuidada, da mais completa das hortas; verde em qualquer
estação. Correm aí duas nascentes: uma é para o jardim, que rega por inteiro, e
a outra, sob a entrada do pátio, vira em direcção à alta mansão aonde vem buscar
água toda agente do povoado.
Maravilhosa
evocação do algures, aqui insular: o
que será com frequência o caso, onde confluem todas as aventuras. Hesíodo
reúne-se a Homero neste aspecto quando, na sua Teogonia, situa além
do ilustre poente o jardim onde as Hespérides, ninfas filhas da Noite, cuidam dos belos pomos de ouro e das árvores
que os dão. Horácio, por seu lado, no décimo-sexto Epodo, faz surgir no oceano as Ilhas Afortunadas: … onde a terra, todos os anos, ao homem
entrega Ceres sem trabalho; onde, constantemente, a vinha floresce sem que a
podem; onde germina o ramo de uma oliveira que nunca ilude; onde o figo
trigueiro decora uma árvore que é a sua; onde o mel escorre do côncavo da azinheira;
onde, do alto dos montes, ressalta com sonoridade a onda ligeira. Ali, sem
serem conduzidas, as cabras vêm até às vasilhas de ordenhar e o rebanho traz de
bom grado as tetas distendidas. O urso não ruge ali à tardinha em redor dos
redis; o solo profundo não está ali cheio de víboras [...]; o húmido Euro não
mina ali os campos debaixo das suas torrentes de chuva; [...] as grossas
sementes não são queimadas debaixo dos torrões ressequidos [...]. Nenhum contágio
ataca o gado, nenhum astro consome os rebanhos com os seus ardores desenfreados.
O
poema precisa, no final desta evocação, que Júpiter reservou estas costas para uma
raça piedosa, quando alterou por meio do bronze a pureza do século de ouro. Voltaremos
a encontrar na Idade Média e até na Renascença a crença de que um lugar vizinho
do paraíso terrestre e beneficiando até certo ponto dos seus privilégios
subsistiria sempre ao longe, no nosso planeta, e poderia ser acessível aos mais
audaciosos dos seres humanos. Na época em que Horácio descrevia as Ilhas
Afortunadas, Diodoro da Sicília narrava na sua Biblioteca Histórica a viagem, a partir da Etiópia, de um
certo Iambulus por uma ilha situada longe, ao sul, na região do equador. Os
seus habitantes, afirma ele são grandes, bem proporcionados, quase idênticos,
dotados de um corpo ao mesmo tempo forte e ági1. Têm cabelos, pestanas e
sobrancelhas, mas não têm quaisquer outros pêlos. As orelhas são mais
desenvolvidas que as nossas. Possuem como que uma língua dupla, de maneira que
podem conversar com duas pessoas ao mesmo tempo. O clima da ilha é temperado,
não obstante a sua latitude, e não se sofre nem com o calor nem com o frio. A água
é abundante, repartindo-se em nascentes quentes e regatos frescos. A natureza
produz com abundância tudo o que é necessário à vida. Faz nascer animais
extraordinários mas inofensivos e úteis. Os insulares não conhecem de maneira
geral a doença e podem atingir os cento e cinquenta anos. Para lá dessa idade,
são convidados a abandonar a vida deitando-se sobre uma planta particular que
os adormece definitivamente. Não se casam; todos os filhos são comuns e
tomam-se medidas para que as mães não reconheçam os seus: não existem também
rivalidades entre elas. Vivem em grupos de parentesco que não ultrapassam
quatrocentos membros. Regulamentos estipulam que num dia toda a gente coma
peixe, no outro carne, etc. A harmonia reina entre os habitantes: as discórdias
cívicas são-lhes desconhecidas. Ilhas utópicas
comparáveis a estas conhecerão uma longa carreira histórica no Ocidente». In Jean Delumeau, 1992, Uma História
do Paraíso, O Jardim das Delícias, Terramar Editores, Lisboa, 1994, ISBN
972-710-059-7.
Cortesia de
Terramar/JDACT