domingo, 16 de novembro de 2014

Poesia Reunida. Manuel A. Pina. «No momento da felicidade o teu lugar, se tens um lugar, não te pertence já, e vice-versa. E o teu caminho e os teus passos e a nuvem de poeira são só uma pequena nuvem de poeira, forma, só forma»

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Ainda não é o fim nem o princípio do mundo…
Os tempos não
«Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço, no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios».


Já não é possível
«Já tudo é tudo. A perfeição dos
deuses digere o próprio estômago.
O rio da morte corre para a nascente.
O que é feito das palavras senão as palavras?

O que é feito de nós senão
as palavras que nos fazem?
Todas as coisas são perfeitas de
nós até ao infinito, somos pois divinos.

Já não é possível dizer mais nada
mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito: a mais e a menos.
Poemas de Manuel António Pina in ‘Poesia Reunida

In Manuel António Pina, Poesia Reunida, Documenta Poética nº 62, Assírio e Alvim, Lisboa, 2001, ISBN 972-37-0661-X.

Cortesia de AAlvim/JDACT