«(…) Homero, algures no século VIII a. C., parece, de facto, ter concebido
o mundo como um disco, no qual a terra firme (com o mar Mediterrâneo no
centro) estava cercada por um rio oceânico em permanente movimento. Mas já
na Grécia Clássica, a noção da esfericidade da Terra era dominante. O geógrafo
Eratóstenes (276-194 a. C.) chegou mesmo a calcular o seu diâmetro com
boa precisão, mas foi Platão e, sobretudo, Aristóteles quem fez vingar
definitivamente o conceito da Terra
redonda que passou aos geógrafos da Idade Média. Nesta época
subsistiam, portanto, várias tradições herdadas da Antiguidade, cujos autores
foram, ainda e durante muito tempo, as autoridades mais respeitadas nestas
temáticas, em conjunto com a Bíblia e alguns Doutores da Igreja. Não
concordavam entre si em vários aspectos, mas o pressuposto de que o mundo era
esférico dominava de forma clara e inequívoca. A tradição da Terra plana cujo principal defensor foi Cosmas
Indicopleustes, um monge e viajante egípcio que viveu no século VI, era
diminuta e não mereceu grande crédito entre os comentadores e autores medievais
mais importantes. Isto não significa que não subsistissem dúvidas e
incongruências. Uma das mais interessantes diz respeito à necessidade que o
homem medieval tinha de tentar conciliar os conhecimentos dos autores gregos e
romanos com as palavras da Bíblia. Ora, esta fala em quatro cantos do mundo; como era então possível conceber um mundo esférico com quatro cantos?
A maior parte dos autores minimizava esta contradição ou deixava-a em aberto.
Quem desenhava e ilustrava mapas resolvia esta quadratura do círculo com o traçado de um mundo esférico dentro de
um quadrado, preenchendo os quatro cantos vazios com iluminuras.
A concepção de um mundo plano, além de constituir uma tradição geográfica
de reduzida expressão, não era, portanto, um obstáculo à exploração e à
navegação oceânica. Havia outras ideias defendidas por alguns autores que
colocavam questões bem mais sérias a esta possibilidade. A mais importante era,
talvez, a dos antípodas. Vários
geógrafos da Antiguidade discutiram a possibilidade de existência de vida
humana no outro lado do mundo. É uma questão que nos parece ridícula hoje em
dia, mas que era muito pertinente na época. Uma vez que havia a percepção de
que a temperatura aumentava quando se avançava para sul, alguns autores
concebiam a existência de uma zonatórrida,
à latitude do equador, onde a vida não seria possível devido ao extremo calor.
Alguns mapas da época assinalam uma faixa de oceano em toda esta região,
separando o que chamamos hoje de hemisfério norte do hemisfério sul. Mas prosseguindo
ainda mais para sul, existiria uma outra zona temperada como a da
Europa? E seria habitada?
Eram isto os antípodas.
Foi o geógrafo romano Macróbio (século V) quem sistematizou estas
ideias, que perduraram ao longo dos séculos seguintes, e alargou igualmente o
debate e as dúvidas: seria possível
viajar e passar incólume pela zona tórrida? E se existissem homens no
outro lado do mundo (ou seja, nos (antípodas), seriam descendentes de Noé? De que filho? Por fim, existia uma outra tradição,
igualmente importante mas muito mais recente, a do geógrafo greco-romano
Ptolomeu (século II), redescoberta na Europa no século XV. Esta lançava dúvidas
igualmente pertinentes sobre as viagens de exploração, em concreto as que os
Portugueses fizeram no século XV: o continente africano prolongava-se
indefinidamente para sul, não permitindo qualquer comunicação marítima com o
Índico e com a Ásia. Neste, como noutros aspectos e interrogações, a prática de
navegação e de contacto directo constituiu a prova definitiva de confirmação ou
refutação das tradições geográficas europeias, que se haviam mantido
praticamente inalteradas durante mais de um milénio.
Existiu uma Escola de Sagres?
É, possivelmente, o mito mais divulgado e resiliente da história de Portugal,
como se de uma praga viral ou de uma bactéria resistente aos antibióticos se
tratasse: há muito que se provou que não tem fundamento, mas permanece incrustado
no imaginário nacional e continua presente em livros, sítios da Net, materiais
de promoção turística e, até, por entidades respeitáveis de quem se exigiria
maior rigor e responsabilidade. A maior empresa nacional paga anúncios de
página inteira na imprensa escrita com o homem
do chapeirão com a seguinte legenda, da
remota escola náutica de Sagres desenhou-se um Mundo novo, criou-se a civilização
transoceânica, renovou-se Portugal. Um prestigiado instituto de uma reputada
universidade portuguesa afirma-se apostado em renovar o fantástico exemplo cosmopolita da Ecola de Sagres, com
a qual o infante Henrique colocou Portugal no caminho dos Descobrimentos. E lá fora? Ainda é possível
encontrar curiosas reminiscências em obras de reputados historiadores
estrangeiros da actualidade: o infante
Henrique criou a Escola de Sagres para onde convidou, com elevadíssimos honorários, construtores náuticos,
navegadores, matemáticos, astrónomos e geógrafos, entre outros especialistas
estrangeiros». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? A
Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.
Cortesia de E. dos Livros/JDACT