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A época contemporânea. Introdução
A redefinição do público e do privado (1820-1950)
«Eles tinham bebido a
última gota de café por umas chávenas pequeninas, brancas, de porcelana
finíssima. Deram um beijo e retiraram-se para o gabinete, onde se recostaram em
duas belas cadeiras longas, fofas, convidativas ao sono, ao descanso de um bom
jantar. Havia sete meses que se tinham casado, que um padre com o seu latim
lhes tinha permitido trocarem os seus abraços e as suas carícias. E ela embrulhada,
galantemente, num roupão de lã, deixava perceber que não vinha muito longe o
dia em que seu esposo receberia a coroação de pai. Tinham comido com um
magnífico apetite. O cavaco estabelecera-se à mesa com a animação própria de
dois amigos; discutiram umas pequenas coisas, uns negociozinhos de casa, beberam
à saúde um do outro, depois de aberto um falerno de quinze anos, enfim,
passaram deliciosamente uma hora saboreando um belo jantar, servido com todos
os atractivos, com os nadinhas adoráveis, que lhes dava um tom principesco,
apesar da sua mediocridade. Ele, o esposo feliz, acendera um bom charuto e
contemplava, preguiçosamente, as nuvenzinhas de fumo azulado que se perdiam no ar.
Tinha as pernas estendidas, a cabeça inclinada para trás, entregue à mais
completa despreocupação. Ela deixava entrever um delicado pé num sapato de
cetim cor--de-rosa, pousado sobre um tamborete, e palitava, negligentemente, uns
dentes brancos, iguais, aromatizados, sentindo-se bem naquele confortável paraíso,
onde a primeira dúvida ainda não tinha ousado penetrar (...)». In Carlos Moura Cabral, ‘Depois do jantar’, O Occidente, 1 de
Dezembro de 1879.
Este relato, extraído de uma crónica publicada na revista O Occidente, evoca um dos
símbolos mais emblemáticos da vida privada oitocentista: o jantar em família (o
actual almoço), tomado no aconchego do lar. O cenário descrito é pródigo em
lugares-comuns que desenham, a traço grosso, os elementos que recriam o
ambiente intimista, sinónimo de felicidade: a lassidão dos corpos, propícia ao
devaneio e ao suave abandono; a espontaneidade dos gestos, liberta do garrote
dos formalismos e das conveniências sociais; a tranquilidade mansa do conforto
doméstico em ambiente amoroso; o erotismo subtil de um roupão e a sensualidade
de um minúsculo pé; as confidências sussurradas... Elementos soltos que
reconstituem, na ficção literária, o jardim das delícias da intimidade
conjugal, cerne da vida privada, resguardado da intrusão alheia, inclusive dos
olhares indiscretos dos criados. Um paraíso
que constitui, no entanto, um privilégio, reservado a uma pequena elite do nascimento
ou da fortuna: a vida privada é, no decurso do século XIX, um fenómeno
essencialmente burguês.
Para a grande maioria da população, rural ou urbana, que
vive em modestíssimas habitações, senão mesmo em estreitas e infectas moradas, húmidas
e lôbregas, sem ar e sem luz, como descreviam tantos autores, na viragem do
século XIX para o XX, as condições materiais da habitação operária, tanto das ilhas do Porto como dos pátios e das colmeias de Lisboa, os espaços privados são inexistentes, vivendo-se
quase na rua, à vista de todos. De um modo geral, as casas reduzem-se a uma cela com uma porta de entrada,
prolongando-se por entradas comuns a todos os moradores, onde se faziam a
comida, as lavagens e os despejos. Seria impossível situar a cena doméstica acima
transcrita no casario cerrado das vielas sujas e degradadas das freguesias
urbanas, onde se amontoa o operariado, e nas quais até o soltem medo de entrar. Nos meios rurais, as condições de
habitabilidade não são melhores, tendo chocado a rainha D. Estefânia aquando de
uma visita efectuada pouco depois do seu casamento, em 1858, deixando as suas impressões numa carta escrita à sua mãe: (...) Aquela pobre gente tinha um ar
muito contente e alegre na sua cabana miserável que não passa de um monte de
pedras coberto dalgumas telhas, sem janelas, com uma porta só, chão térreo, rachas
de todos os lados que deixam a passagem livre às chuvas e ao vento; é horrível
e é ali que aquela pobre gente passa a vida com os seus porcos (...). A
intimidade exige condições de alojamento e a organização racional do espaço
doméstico adaptada aos diferentes momentos do dia-a-dia, estrutura que
caracteriza uma certa tipologia de residências burguesas que se divulga a partir
do último quartel do século XIX, mas impensável nas habitações populares, de
uma única divisão, com áreas que não
excediam os 16 m2, partilhadas por famílias completas, de 6-7 elementos». In JoséMattoso,
História da Vida Privada em Portugal, A Época Contemporânea, coordenação de
Irene Vaquinhas, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2011, ISBN
978-989-644-149-4.
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