Palavras não
«Palavras não me faltam (quem diria o quê?),
faltas-me tu poesia cheia de truques.
De modo que te amo em prosa, eis o
lugar onde guardarei a vida e a morte.
De que outra maneira poderei
assim te percorrer até à perdição?
Porque te perderei para sempre como
o viajante perde o caminho de casa.
E, tendo-te perdido, te perderei para sempre.
Nunca estive tão longe e tão perto de tudo.
Só me faltavas tu para me faltar tudo,
as palavras e o silêncio, sobretudo este».
A Revolução das
Letras. A ordem alfabética (Tanto Fazia…)
«(…) Até que um dia, o dono do alfabeto, que era quem escrevia
com ele, reuniu os seus gramáticos e disse: - Façam qualquer coisa, senão as
letras revoltam-se. Ainda fazem alguma cooperativa e começam a escrever
sozinhas! Mas por mais leis que os gramáticos fizessem nunca mais conseguiram
meter as letras na Ordem Alfabética. E depois das letras revoltaram-se as
palavras, e depois os livros, e depois as bibliotecas, e depois tudo.
O Têpluquê
«Era um a vez um menino que tinha um defeito de pronúncia.
Não era capaz de dizer tè: dizia quê. Trocava o tê pelo quê. Trocava o têpluquê. Em vez de dizer tasa,
como toda a gente, dizia casa; em vez de dizer tão,
dizia cão; em vez de dizer tapete, dizia caspete (às vezes deixava
uns tês para trás, deixava uns quês para crás). E assim por
diante: em vez de dizer tábua, dizia cábula; em vez de dizer tu,
dizia rabo; em vez de dizer Tomé, dizia Comé; em vez de dizer taxímetro,
dizia caxímetro, etc. (em vez de dizer etc., dizia ecc.). Esta
história (em vez de dizer esta
história, dizia esca escória)
tem uma moral, é das que têm moral: todos os defeitos de pronúncia (como os
outros defeitos todos, há uma história para cada defeito) têm também virtudes
de pronúncia, senão eram defeitos perfeitos. Ao menino, como a toda a gente que
tem defeitos de pronúncia, entaramelava-se-lhe a língua; este menino tinha
sorte porque, como as letras do defeito dele eram o tê e o quê, a língua
encaramelava-se-lhe e o menino gostava muito (goscava muico)».
Calo-me
«Calo-me quando escrevo
assim as palavras falam mais alto e mais baixo.
Nada no poema é impossível e tudo é possível.
Mas não arranjo maneira de entrar no poema
e de sair de mim e por isso a minha voz é profunda e rouca
e por isso me calo (e como me calarei?)
No entanto ninguém é tão falador como eu.
Nem há palavras que não cheguem para não dizer nada.
E vós também: não me faleis de nada ou falai-me.
Porque não sabeis o que dizeis».
Poemas de Manuel
António Pina in ‘Poesia Reunida’
Prosa de Manuel António Pina in ‘O Têpluquê’
In Manuel António Pina, Poesia Reunida, Documenta Poética nº 62,
Assírio e Alvim, Lisboa, 2001, ISBN 972-37-0661-X.
Para ti Manuel António. Que estejas em Paz!
Cortesia de AAlvim/JDACT