«Espero que este livro nunca venha a ser
lido. Há entre nós melhor do que um amor: uma cumplicidade». In
Marguerite Yourcenar, ‘Fogos’
«(…)
Ausente, a tua figura aumenta a ponto de encher o universo. Passas ao estado
fluido que é o dos fantasmas. Presente, ela condensa-se; atinges as
concentrações dos metais mais pesados, do irídio, do mercúrio. Morro com esse
peso quando ele me cai sobre o coração. O admirável Paul enganou-se. (Falo do
grande sofista e não do grande pregador.) Existe, para todos os pensamentos,
para todos os amores que, entregues a si próprios, talvez desfalecessem, um
cordial singularmente enérgico que é todo o resto do mundo, que está em
oposição a ele, e que não o vale. Solidão... Não creio como eles crêem, não
vivo como eles vivem, não amo como eles amam... Morrerei como eles morrem. O
álcool desembriaga. Depois de alguns golos de conhaque já não penso mais em ti.
Fedra
ou o desespero
Fedra
consegue tudo. Abandona a mãe ao touro, a irmã à solidão: estas formas de amor
não a interessam. Abandona o seu país como quem renuncia aos seus sonhos;
renega a família como quem vende as suas recordações na feira da ladra. Nesse
meio em que a inocência é um crime, assiste desgostosa àquilo em que acabará
por se tornar. O seu destino, visto do exterior, horroriza-a: ainda não o
conhece senão sob a forma de inscrição na muralha do Labirinto: pela fuga arranca-se
ao seu horrível destino. Desposa distraidamente Teseu, tal como Santa
Maria a Egípcia pagava com o corpo o preço da sua passagem; deixa afundar-se no
Ocidente, num nevoeiro de tábula, os matadouros gigantes da sua espécie da
América cretense. Desembarca, impregnada com o odor do rancho e dos venenos do Haiti, sem saber que traz em si a lepra
contraída sob um tórrido Trópico do coração. A sua estupefacção à vista de
Hipólito é a de um viajante que descobre ter retrocedido no seu caminho sem o
saber: o perfil daquela criança recorda-lhe Cnossos, e o machado de dois gumes.
Odeia-o, educa-o; ele cresce contra ela, repelido pelo seu ódio, desde sempre habituado
a desconfiar das mulheres, forçado desde a escola, desde as férias do Ano Novo,
a saltar os obstáculos que espalha em seu redor a inimizade de uma madrasta.
Ela tem ciúme das suas flechas, quer dizer, das suas vítimas, dos seus
companheiros, quer dizer, da sua solidão. Nessa floresta virgem que é o lugar de
Hipólito, planta inconscientemente os postes indicativos do palácio de Minos:
traça através desses bosquedos o caminho de sentido único da Fatalidade. Em
cada instante, recria Hipólito; o seu amor é realmente um incesto; não pode
matar aquele rapaz sem cometer uma espécie de infanticídio. Fabrica a sua
beleza, a sua castidade, as suas fraquezas; arranca-as do fundo de si própria;
isola dele essa pureza detestável, para a poder odiar na figura de uma virgem
insípida: forja com todas as peças a inexistência de Arícia. Embebeda-se do
gosto do impossível, único álcool que serve sempre de base a todas as misturas
da infelicidade. No leito de Teseu, tem o amargo prazer de na
realidade enganar aquele que ama, e em imaginação aquele que não ama. É mãe:
tem filhos como teria remorsos. Entre os lençóis húmidos de febril, consola-se
com a ajuda de sussurros de confissão que chegam até às da infância,
balbuciadas no pescoço da ama; suga a sua infelicidade; transforma-se por fim
na miserável criada de Fedra. Perante a frieza de Hipólito, imita o sol quando
incide num cristal: transforma-se em espectro; já não habita o seu corpo senão
como o seu próprio inferno. Reconstrói no fundo de si própria um Labirinto onde
não pode senão reencontrar-se: o fio de Ariana já não lhe permite sair de lá
pois que o enrolou em redor do coração. Enviúva; pode finalmente chorar sem que
lhe perguntem porquê; mas o negro não fica bem a essa figura sombria: ela odeia
o seu luto por dar troco à dor. Desembaraçada de Teseu, transporta a sua
esperança como uma vergonhosa gravidez póstuma. Faz política para se distrair
de si própria: aceita a Regência tal como começaria a tricotar um xaile. O
regresso de Teseu dá-se demasiado tarde para a fazer regressar ao mundo das
fórmulas onde se acantona esse homem de Estado; não consegue lá entrar senão
por meio de um subterfúgio; inventa, de alegria em alegria, a violação de que
acusa Hipólito, de tal forma que a sua mentira é para ela uma saciedade. Diz a
verdade: suportou os maiores ultrajes; a sua impostura é uma tradução. Toma
veneno, porque está mitridatada contra si própria; o desaparecimento de Hipólito
cria o vazio em seu redor; aspirada por esse vazio, mergulha na morte». In
Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995,
ISBN 972-29-0315-2.
Cortesia
Difel/JDACT