Uma
aventura Literária
«(…)
Missanga, é possível. A obra, uma vez realizada, parece fácil. Não é tão fácil
como isso. A figura do Cavaleiro estava, de facto dentro dos seus
livros, como os Lusíadas estão dentro do dicionário de Morais. Tudo vai em
acertar o mosaico, em que cooperam engenho, inteligência e saber. A figura do Cavaleiro,
social, vivedoira, com os seus cinco sentidos, aquela sua agilidade de
pintalegrete, estava de pé e, embora com as suas sombras esfumadas, era palpite
meu que não era nenhum manequim convencional, nenhuma personagem do Museu
Grévin siderada aos olhos do espectador. Entretanto Jordão Freitas, um operoso
garimpeiro de tombos, começou a publicar, ipsis
verbis, no jornal a Época, documentos exumados dos
arquivos, concernentes ao Cavaleiro. Eram todos de essência oficial e
reportavam-se à sua actividade em tanto que empregado de secretaria, na embaixada
de Viana, ao serviço do conde de Tarouca. Além destes, transcritos na sua secura
tabelionar, poucos mais, e todos procedentes dos cartórios e arquivos públicos
como fica dito, publicou Jordão Freitas. Aconteceu porém que veio a lume nos
jornais diários o programa cultural da Biblioteca. Como nesse programe se
anunciasse o meu trabalho sobre o Cavaleiro de Oliveira, Jordão Freitas,
a fugir à contingência de ser ultrapassado na publicação dos documentos, deu-se
a publicá-los à lufa-lufa, ou pelo
menos mais aceleradamente do que até ali. Tal conjuntura vinha favorecer os meus
desígnios.
Nunca
eu pensara em disputar-lhe a -glória de pioneiro. A velha papelada, com suas
surpresas esplêndidas embalsamadas em bolor e miasmas, nunca me seduziu. Também
me minguava a pachorra. A pachorra e o tempo. O rat de bibliotèque é um bicho especial que tem por si a
eternidade e uma sorte de pulmões de pescador de pérolas. Respira na poeira dum
sótão como o mergulhador no fundo do mar. Para e1e, a suprema volúpia é furar
através de papéis arrumados desde o princípio dos princípios, por mão em fantasmas.
Um múnus assim tem o seu quê dos limpa pára-raios. Há uma data a rectificar: … pois,
senhores, não foi em 6 de Fevereiro de 1164
que se deu a batalha dos Chifres Esmurrados; foi em 7 de Janeiro. A prova é
que..., o marechal do Chuço em Riste tivera na véspera um desaguisado sério...,
etc., etc. Há que chumaçar a vida dum grande macabeu, dum apóstolo dos negrinhos da Guiné, dum navegador antártico?...
Desmonta os maços pulverulentos dos armários, percorre os cartários das
sacristias, folheia quantos armoriais os velhos fidalgos, desde Atanagildo,
mandaram lavrar por seus capelães. E acaba por encontrar o pábulo precioso. Não
raciocina como a gente de cuidados raciocina. Tem outra tábua de valores mentais.
João
Freitas era destes. A sua biografia do marquês de Pombal não começa assim : … duas
datas importantes há a considerar na vida deste estadista: a do seu nascimento
e a da sua morte. O movimento de sofreguidão era mais que razoável.
Observar-se-á: … Jaime Cortesão podia ter confiado a Jordão Freitas o encargo
de fazer o referido trabalho... Podia,
não podia? Não sei. Naturalmente estava fora da esfera de Jordão Freitas,
dado que não superasse a natureza do seu artesanato. Este era particularmente
um sacerdote de Hermes Trimegista, um verificador de mausoléus. E o que
interessava no Cavaleiro não era o autor das Cartas nem do Amusement,
livros de terceira ordem, plagiados noventa por cento, e, quanto a espírito,
como muitos outros que vieram a lume nesse espiritual e sacripanta século XVIII».
In
Aquilino Ribeiro, Abóboras no Telhado, Polémica e Crítica, Livraria Bertrand,
Lisboa, 1955.
Cortesia
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