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«Este livro vem
tarde.
A guerra e as prisões (a guerra sempre) não me deixaram
forças para fazê-lo antes. A própria violência da guerra atingiu esta pequena
obra na sua primeira forma. Durante as horas serenas ou terríveis de França eu
o tinha apontado com a pena e com o lápis, escrevendo e desenhando. Perderam-se
esses apontamentos na batalha do Lys, ficando-me apenas alguns poucos que
enviara para Portugal. Foi, com eles e com restos de cartas e recordações que
eu reconstituí o perdido, e rascunhei, de novo as minhas memórias. Também
porque elas abrangem as muitas modalidades da nossa guerra cujo teatro se estendeu
desde a própria pátria à África e à França, as variações do tempo nessa larga
curva não me consentiam que o escrevesse, como ele hoje vai, com esse pouco de
verdade, que ainda assim por vezes tão grande dor custa a dizer-se. Direi
apenas o que vi e ouvi. Sofri demais para poder mentir. O sentido da verdade e
a coragem de a dizer são as maiores conquistas que esta guerra deu aos que nela
mergulharam a fundo. Por isso me rio tristemente tanto dos que, sem terem posto
o pé numa trincheira, querem contar a guerra, como daqueles que tendo lá estado
venham para público, penteados e lustrosos, na sua fatiota de heróis, poisar
para a galeria. O que todos, todos puderam sentir nesta guerra foi a sua
infinita capacidade de misérias. Muitos, em nome de altos princípios, deram-se
com heroísmo sereno às mais dolorosas provações. E alguns, quando colocados na
contingência dos deveres terríveis, foram sublimes. Tiveram nos dias cinzentos
horas de claridade divina. Mas só assim, amassada com oiro e lama, a verdade é
humana, é inteira e grandiosa. O homem, o mais alto, só o foi, só o é em relação
à sua e à baixeza dos outros. Este livro
vem tarde, mas ainda vem a tempo. Lentamente, a história da
grande guerra há-de escrever-se, povo a povo, tomo a tomo. Quanto a nós,
queremos apenas traçar-lhe uma das páginas. As obras definitivas na História ou
na Arte virão mais tarde, muito mais tarde. Os grandes homens como os grandes
acontecimentos só podem ser vistos e admirados a distância.
Uma estrela, vista de perto (dado que a pequena, distância
pudesse olhar-se) seria um confuso vendaval de fogo e lava destruidora. Vistas à
distância imensa a que nós as olhamos cabem às centenas no mesmo fitar de olhos
e espalham nas noites sem lua uma doce claridade. A distância, a distância no
espaço e no tempo, é a condição indispensável para que os astros, os homens e
os factos tenham beleza. Que os Tácitos e os Homeros de hoje, se é que os
temos, poisem o cálamo egrégio, deslacem as cordas da lira canora. É cedo. Mas
quando o estatuário das obras definitivas e imorredouras largar, de escopro na mão,
para jogar ao mármore o primeiro talho, já então ele tomou para o arranjo da
sua estátua qualquer linha fugaz das que animam este gesso efémero. Eles virão
e hão-de colher um pouco destas páginas, onde há lágrimas, risos, misérias,
drama e epopeia.
Há quem pretenda, eu sei, que esta, a nossa guerra, não dá
um canto de epopeia. Que é mero assunto para relatos frustes, coisas de somenos,
frioleiras. Felizmente os que assim falam não definem a nossa guerra mas o seu temperamento,
marcado pela faculdade estreita de ver o riso e a espuma das coisas. Nem por
isso a nossa guerra, como as outras, deixa de se repassar de sofrimento e de
epopeia. Para isso bastava a batalha do Lys e a arrancada épica
daqueles homens, que, vencendo a inércia e a descrença dos grandes chefes,
conseguem, através de tudo, marchar para a frente, onde se ganhava a vitória. Vem tarde este livro, mas cedo
todavia para a visão inteira e larga da nossa luta. Também para a justiça dos
homens e para a comovida curiosidade com que tu, ó leitor, o deverás folhear, eu sei que é infinitamente cedo ainda». In Jaime Cortesão, Memórias da
Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.
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