«Arcaica e futura, assim chamei à
dramaturgia de Natália Correia, não tendo apenas em conta a temática do
presente colóquio. De facto, a obra dramática nataliana aparece-nos numa tensão
criativa permanente entre a ascendência dramatúrgica que bebe nas fontes dos
dois teatros clássicos (greco-latino, por um lado, e ibérico por outro, nas
suas manifestações renascentista e barroca) e o ensaio de formas novas numa
expressividade poético-dramática de cunho pessoalíssimo, que se confronta
livremente com correntes teatrais novecentistas (surrealismo, teatro épico,
teatro antropológico, etc). Entre 1952 e 1989, Natália Correia produz uma obra dramatúrgica, composta por
quinze títulos (para além de muitas outras traduções e versões para cena de textos
alheios), que fazem dela um dos mais originais dramaturgos portugueses da
segunda metade do século XX. Lugar de experimentação híbrida de formas, e não obstante
o silenciamento cénico (e também editorial) de que é vítima durante o
salazarismo (e não só), o teatro escrito nataliano evolui e viaja por uma
irrequieta diversidade de registos genológicos e estéticos: da fábula surrealista,
infanto-juvenil (Dois Reis e um Sono, 1958) e adulta (Sucubina
ou a Teoria do Chapéu, 1952), ao absurdismo em sátira política (O
Homúnculo, 1965); do mito-drama existencial pós-simbolista (D.
João e Julieta, 1957-58) ao poema-drama mito-crítico ou
auto-referencial (O Progresso de Édipo, 1957, e Comunicação, 1959); do teatro
épico-catártico pós-brechtiano e pós-artaudiano (A Pécora, 1967 e
O Encoberto, 1969) ao teatro
histórico-mítico, que colige o pathos romântico com o estranhamento da
alegoria barroca (Erros Meus Má Fortuna, Amor Ardente, 1980); do
libreto operático socio-crítico (Em Nome da Paz, 1973, com música
de Álvaro Cassuto) ao drama antropológico e arquetípico (Auto do
Solstício do Inverno, 1989); do texto para cantata cénica (O
Romance de D. Garcia, 1969, com música de Joly Braga Santos) ao teatro versificado
ou em prosa que revisita temas da tradição literária, da herança trovadoresca e
do romanceiro (A Juventude de Cid, A Donzela que Vai à Guerra,
e D. Carlos de Além-Mar, três peças de datação incerta).
De entre estas obras, O Encoberto é um excelente exemplo para observar o
jogo criativo nataliano, arcaico e futuro, ao articular a
revisitação de matrizes dramatúrgicas ibéricas, perspectivando a partir delas
novos horizontes da escrita e da cena em português. Sobre a sua afinidade
consciente face a matrizes dramatúrgicas ibéricas, diz a autora: [o meu teatro], embora tenha alguma coisa a
ver com o surrealismo, tem muito mais a ver com a tradição ibérica. A minha
atracção pela estética barroca, que tem raizes peninsulares, portanto
portuguesas, é que me aproxima do teatro ibérico de expressão espanhola, onde
eu encontro libertas e estuantes linhas de força que, na dramaturgia
portuguesa, por um preconceito anti-castelhano, estão abafadas. (...) Os [autores]
que eu encontro mais próximos do meu teatro são Calderón, Lope de Vega, Tirso
de Molina. Valle Inclan ainda continua essa tradição (in Lello, 1988). Com O Encoberto, dá-se a tardiamente
possível estreia cénica de Natália, para um público adulto, ocorrida já após a
revolução de Abril, e dezanove anos depois de Dois reis e um sono ter
sido encenada no Teatro Monumental, pelo Teatro do Gerifalto, esta última uma
fábula política, disfarçada de peça infanto-juvenil, que transfigurava o
confronto entre Humberto Delgado e Salazar, escrita com a colaboração de Manuel
Lima. O Encoberto, peça
publicada em 1969, é de imediato
interditada de circular e de ser posta em cena. A autora endereça então uma
conhecida carta a Marcelo Caetano para que este contrarie o néscio ditame da
censura, mas o esforço é vão. A peça só viria a ser produzida cenicamente em
Lisboa, pela primeira vez, em 1977,
no Teatro Maria Matos, pela Repertório-Cooperativa Portuguesa de Teatro
(1976-1984), liderada por Armando Cortez, numa encenação de Carlos
Avilez, com realização plástica do pintor Lima de Freitas, música de
Fernando Guerra, e um vasto elenco liderado por Ruy de Carvalho (no papel de
Bonami/Sebastião), acontecendo a estreia mundial na ilha natal da autora, no
Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, nos Açores (11/2/1977). Segundo Eugénia Vasques, O Encoberto corresponde na dramaturgia nataliana: à fase de maturidade e de domínio de uma
escrita que, para além de afirmar a voz da poesia no teatro através das figuras
heróicas e condenadas de feiticeiras, vates, loucos, actores e poetas, afirma
também a procura de um modelo de teatro épico-narrativo com preferência pela
forma em três actos (in Vasques, 1999).
Obra de ficção histórico-cénica, baseia-se
ela numa das diversas variantes da lenda do monarca Sebastião I, que se
difundiu e desenvolveu a partir dos finais do séc. XVI, e que afirmava ter o
jovem rei sobrevivido da batalha contra os mouros de Marrocos, tendo escapado
para Itália, onde se manteria sob falsa identidade até conseguir condições para
reconquistar a independência perdida de Portugal, entretanto sob o domínio da
dinastia dos Filipes de Espanha, desde 1580.
Nunca como neste texto a autora, amante da visão barroca, mergulha
intencionalmente na indistinção de fronteiras entre o teatro e a representação
do mundo, num determinado tempo histórico passado, repetidamente objecto de
ironização; de facto, toda a peça aparece como uma reflexão aplicada, a um tempo
dramatúrgica e paródica, sobre as virtualidades expressivas do teatro dentro do
teatro, que tanto podemos filiar primeiro em Shakespeare, como depois na
experimentação modernista de Pirandello. E isto porque a acção nunca deixa de
situar-se, objectiva ou simbolicamente, no palco do teatro. Ao reinventar o
teatro da História, com esta sua fábula em torno do messianismo sebastianista,
a autora pretendeu deixar visíveis e insolúveis as passagens entre a
representação e a matéria representada». In Armando Nascimento Rosa, Arcaica e Futura, A dramaturgia de Natália
Correia, Uma leitura d’O Encoberto, Dramaturgo e ensaísta, Escola Superior de
Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa, Wikipédia.
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