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«Seriam’eu na ermida de San Simon
e cercáronmi as ondas que grandes son
eu atendend’o meu amigo! E verrá?
Estando na ermida, ant’o altar
cercáronmi as ondas grandes do mar
eu atendend’o meu amigo! E verrá?
E cercáronmi as ondas, que grandes son
nen ei barqueiro nen remador
eu atendend’o meu amigo! E verrá?
E cercáronmi as ondas do alto mar
non ei barqueiro nen sei remar
eu atendend’o meu amigo! E verrá?
Non ei barqueiro nen remador
morrerei, fremosa, no mar maior.
eu atendend’o meu amigo! E verrá?
Non ei barqueiro nen sei remar
morrerei eu, fremosa, no alto mar
eu atendend’o meu amigo! E verrá?»
Mendinho, ‘século XIII’
«Estava eu na ermida de San
Simón/ e cercaram-me as ondas que grandes são/ eu esperando o meu amigo! Virá?//
Estando eu na ermida ante o altar/ cercaram-me as ondas grandes do mar/ eu
esperando o meu amigo! Virá?// E cercaram-me as ondas que grandes são/ nem
tenho barqueiro nem sei remar/ eu esperando o meu amigo! Virá?// E cercaram-me
as ondas do alto mar/ não sou barqueiro nem sei remar/ eu esperando o meu
amigo! Virá?// Não tenho barqueiro nem remador/ morrerei, formosa, no mar
maior/ eu esperando o meu amigo! Virá?// Não tenho barqueiro nem sei remar/ morrerei
formosa no alto mar/ eu esperando o meu amigo! Virá?»
«O prémio Carlomagno ilumina-se. Fez parte, suponho, dos meus
sonhos e aí está, ao meu alcance. Só me levantarei para o ir receber a Mainz ou
a Bruxelas, ainda está por decidir, no começo da próxima Primavera. Lembro-me
dele todos os dias, quando acordo, e imagino-me a recebê-lo, tenho, inclusive,
já pensado o eixo do pequeno discurso que devo pronunciar. Vou por aí de discurso
em discurso ainda que lhe chame conferências e amanhã, precisamente amanhã, 23
de Dezembro, vou pronunciar um sobre A
Transubstanciação Mítica de Erec e Enide. Da janela do meu quarto do
hotel posso ver o percurso das escassas lanchas que vêm de Cesantes até ao
pequeno porto das unidas ilhas de San Simon e de San Antonio, e, ainda que
ignore a que horas seja o transbordo de Myrna, confio que o simples gesto de me
assomar, de me encostar no parapeito, encurtará a chegada de Mrs. War Breast.
Com a vetustez de quase 30 anos, Myrna War Breast aparecia em flashback num encontro de arturianos em
Exeter, um impressionante cabelo loiro curto, pescoço ao estilo de Modigliani
mas corrigido pela ginástica rítmica de todas as manhãs, cintura de vespa para aumentar
ao máximo a oferta dos seus dois peitos suficientes e ao mesmo tempo
espectaculares, capazes de ficarem suspensos no vazio sem soutien, uma homenagem
da natureza a si mesma, os peitos de Myrna, a nona maravilha do mundo, como
costumam qualificá-los os artúricos, arturistas ou arturianos. E como Burton observara
o efeito que Myrna me tinha causado, advertiu-me: - Júlio, ela é perigosíssima. Tem apenas trinta anos e já se divorciou
duas vezes. Mas esta é das que se divorciam para se casar e adora substituir um
especialista em assuntos arturianos por outro especialista em assuntos
arturianos. Vem aqui, seguramente, à caça.
Tinha a cara bonita, mas demasiado pequena para justificar a
sua arrogância, quase impertinência que, sem dúvida, se sustentava sobre o
triângulo harmonioso da cintura e dos peitos, ainda que se se conseguisse
deixar de olhar para eles e se se levantasse a vista via-se um notável rosto
onde os lábios e os olhos segredavam e, ao mesmo tempo, prometiam malícias,
sobretudo os olhos que pareciam saber tudo e ter visto tudo sobre ti. Era do
mais bonito que eu jamais tinha contemplado em qualquer universidade ou congresso,
especialmente entre o professorado, e, talvez por isso, me tivesse custado dois
encontros, o de Exeter e o de Saint-Malo, até considerá-la como um colega mais,
competitivo e extraordinariamente preparado, sobretudo no tratamento do Graal
da lenda arturiana, a partir de um certo fascínio por Parsifal, o Galês, o filho da Dama Viúva, de
quem Myrna avaliava que lhe bastava a contemplação da passagem de cinco
cavaleiros para saber que não podia ter outro destino que não fosse o da
cavalaria. A maternidade três vezes referendada de Myrna tinha-a ajudado a
assumir o papel da mãe de Parsifal, aterrorizada pela sorte do seu filho mais
novo e único, já que o seu esposo e os filhos mais velhos tinham morrido em
lances de cavalaria. Parsifal era como se fosse um filho adoptivo de Myrna, especialmente
na versão de Chrétien de Troyes, e sentia demasiado concluído o Parsifal de von Eschenbach, ainda
que assumisse o grande interesse de sublinhar a dualidade da personagem, herói
contraditório, bom e mau ao mesmo tempo. Nem sequer uma professora especialista
em literatura medieval pode negar de todo a dependência à sua época de
culminação adolescente, a de Myrna ultimada com os anos 50, quando o cinema
transformava heróis ambíguos em bens de consumo. Raramente um especialista em
matéria arturiana ou da Bretanha é apenas um especialista num assunto tão
subtil como breve, pelo que a maioria dos especialistas entram por outras
causas da Baixa Idade Média ou, inclusive, vão até ao Renascimento ou se exilam,
como Myrna, noutras épocas e culturas e conseguem, como ela, ser uma autoridade
universal em Defoe. Porquê
precisamente Defoe? Porque
estava ao serviço da revolução burguesa? Não. Sou partidária de Defoe
porque era um confidente, esteve condenado ao pelourinho e, no entanto, criou o
protótipo do herói do seu tempo, o Robinson Crusoe». In Manuel
Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.
Cortesia de Difel/JDACT