domingo, 9 de novembro de 2014

História da Vida Privada em Portugal José Mattoso. «… a vida privada emerge na segunda metade do século XVIII, no momento em que despontam os sistemas políticos democráticos que definem uma nova categoria de cidadão, centrada no exercício de direitos cívicos e políticos…»

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A época contemporânea. Introdução
Sob o olhar da história: da vida privada família à vida privada individual (1820-1950)
«(…) O século XIX é geralmente considerado o século de ouro da vida privada. O fecho da família sobre si própria; a modificação da planta interior das casas, com a delimitação de áreas reservadas (para os criados, quartos de dormir para o casal e para os filhos, aposentos destinados à higiene pessoal, escadas de serviço); o gosto pelo conforto doméstico; o progresso da consciência individual, são alguns dos sintomas do reforço da privatização, no século do liberalismo, constituindo uma etapa decisiva na evolução dessa outra grande história que é a da noção de intimidade e na qual aquela se integra. De um modo geral, a maior parte dos autores tende a sublinhar, como consequência das formulações políticas do século das luzes, a oposição entre o Estado e a sociedade, da qual resulta a separação das esferas pública e privada. Esta última reforça-se no decurso de oitocentos, sob uma concepção restritiva do Estado, se bem que este se venha a constituir como garante dessa autonomia, fenómeno que acompanha a afirmação da burguesia no contexto da progressiva democratização da sociedade e do desenvolvimento do mercado económico concorrencial.
Em rigor, a vida privada define-se por oposição à vida pública, identificando aquela que se passa em particular, ou seja, distingue-se por aquilo que a separa dos órgãos formais do aparelho político-administrativo do Estado e de tudo o que denuncia uma relação com a coisa pública, sejam bens, valores ou o exercício de uma actividade profissional. Deve-se a Benjamin Constant (1767-1830), referência incontornável do pensamento liberal, a sua incorporação na ideologia política que emergiu da Revolução Francesa e o atribuir-lhe valor instrumental no quadro teórico e normativo da sociedade burguesa. Invocando princípios novos decorrentes de uma cultura política assente na noção de liberdade, a vida privada é considerada, por aquele influente sistematizador da doutrina liberal com largo eco no triénio vintista, uma característica do homem moderno por oposição ao homem antigo, empenhado nas cousas públicas. Deste modo, o conceito de vida privada enquadra-se no discurso cultural e político liberal, sendo associado à ideia de modernidade e de ruptura com o passado, em particular, com a sociedade de Antigo Regime. É na vida privada que o indivíduo experimenta o sentimento de independência, sendo entendida como refúgio e lugar por excelência da felicidade individual e colectiva.
Desde a Revolução Francesa à actualidade, o conceito de vida privada tem vindo a ser objecto de uma profunda reflexão teórica que problematiza o seu conteúdo, a delimitação das suas fronteiras e as zonas de interacção relativamente ao espaço público, bem como as estruturas de sociabilidade que se entrecruzam no seu seio entre outros aspectos. Para além do já referido Benjamin Constant, Alexis Tocqueville (1805-1859), no século XIX, ou, já no século XX, Norbert Elias (1897-1990), Jurgen Habermas e, mais recentemente, Richard Sennett, Albert Hirschmann, Anthony Giddens e Jean-Claude Kaufmann, são alguns dos autores que têm interrogado criticamente a lógica da separação dos espaços públicos e privados e analisado os factores institucionais e ideológicos que condicionam o respectivo movimento pendular ao longo do tempo. Porém, independentemente do conteúdo que cada qual atribui ao conceito, todos os autores parecem coincidir num ponto: a vida privada emerge na segunda metade do século XVIII, no momento em que despontam os sistemas políticos democráticos que definem uma nova categoria de cidadão, centrada no exercício de direitos cívicos e políticos, bem como numa organização social formada, em princípio, por homens livres e iguais. Todos os autores ainda admitem que é no decurso do século XIX, sob o impulso da burguesia, que a vida privada tem o seu apogeu, sendo associada às alegrias da intimidade familiar, irradiando progressivamente para os meios populares». In JoséMattoso, História da Vida Privada em Portugal, A Época Contemporânea, coordenação de Irene Vaquinhas, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2011, ISBN 978-989-644-149-4.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT