«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do
Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»
Janeiro de 1984
«Entre todos os lugares possíveis, foi naquele ponto certo. O
serão ia adiantado e sem lua, só estrelas geladas a romperem o opaco do céu,
espetadas a partir de dentro. Galveias
descaía lentamente para o sono, os pensamentos evaporavam-se. A escuridão era muito
fria. Ao longo das ruas desertas, os candeeiros entornavam cones de luz
amarela, luz fosca, engrolada. Passavam minutos e quase podia haver silêncio,
mas os cães não deixavam. Ladravam à vez, de uma ponta da vila à outra. Cães
novos, sozinhos em quintais, a gritarem latidos que terminavam em uivos; ou
rafeiros moribundos de sarna, encostados ao lado de fora de um muro e a
levantarem a cabeça apenas para lamentar a noite, revoltados e fracos. Se
alguém estivesse a prestar atenção àquela conversa , talvez enquanto adormecia
entre lençóis de flanela, seria capaz de distinguir a voz de cães maiores e
mais pequenos, cães ariscos, nervosos, estridentes ou de voz grossa, gutural,
animais pesados como bois. E um cão lá longe, a ladrar sem pressa, o som do seu
discurso alterado pela distância, erosão invisível; e um cão aqui perto,
demasiado perto, a raiva do bicho quase a levantar uma espertina no peito; mas
depois um cão noutra ponta da vila e outro noutra e outro noutra, cães
infinitos, como se desenhassem um mapa de Galveias
e, ao mesmo tempo, assegurassem a continuação da vida e, desse jeito,
oferecessem a segurança que faz falta para se adormecer. Lá do alto, do cimo da
capela de São Saturnino, Galveias
era como as brasas de um lume a apagar-se, cobertas de cinza e imperturbáveis.
Mesmo como as brasas de um lume, certas chaminés largavam fios de fumo muito
direitos: gente que ainda estava acordada, a espicaçar restos de fogo com
conversas ou cismas. Mas as casas, noite e janeiro, firmavam-se no chão, faziam
parte dele. Rodeada por campos negros, pelo mundo, Galveias agarrava-se à terra.
No espaço, numa solidão de milhares de quilómetros onde
parecia ser sempre noite, a coisa sem nome deslocava-se a uma velocidade
impossível. O seu sentido era recto. Planetas, estrelas e cometas pareciam
observar a decisão inequívoca com que avançava. Eram uma assembleia muda de corpos
celestes a julgar com os olhos e com o silêncio. Ou, pelo menos, essa impressão
era provável porque a coisa sem nome atravessava a lonjura do espaço com uma
velocidade de tal ordem, de tal indiferença e desapego que todos os astros
pareciam estáticos e severos por comparação, todos pertenciam a uma imagem
nítida e pacífica. Assim, o mesmo universo que a lançara, que a insuflara de
força e direcção, assistia suspenso ao seu percurso. Existia o ponto de onde tinha
partido, mas cada segundo destruía um pouco mais a memória desse lugar. Aquela
sucessão de instantes compunha um tempo natural, isento de explicações. Passado
sim, futuro sim, no entanto aquele presente impunha realidade, era composto
apenas por ambições límpidas. E nem a violência que a coisa sem nome fazia ao
rasgar caminho conseguia sobrepor-se à tranquilidade da sua passagem, distante
de tudo e, mesmo assim, integrada numa arrumação cósmica, simples como
respirar. Avisados por um alerta secreto, os cães calaram-se durante um
instante que não dava mostras de fim. O fumo das chaminés paralisou-se ou, se
continuou, seguiu uma linha imperturbável, sem sobressaltos. Até o vento, que
se entretinha apenas com o barulho de alisar as coisas, pareceu conter-se. Esse
silêncio foi tão absoluto que suspendeu a acção do mundo. Como se o tempo
soluçasse, Galveias e o espaço
partilharam a mesma imobilidade.
E até aqueles que estavam sozinhos nas suas casas, esparramados
numa soneira ou distraídos na última tarefa do dia: pousar o púcaro de
esmalte no armário, esticar o dedo para desligar a televisão, descalçar as
botas. Todos mantiveram a sua posição única e todos ficaram parados no acto
que os ocupava. Até a Lua, onde quer que estivesse, invisível naquela noite.
Até o adro da igreja, lá no alto, com vista para a Deveza, imóvel como a
estrada de Avis. E os campos em redor, trevas arborizadas, a estenderem-se até
à Aldeia de Santa Margarida, conforme se sabe, e imóveis também. Até o terreiro.
Até o jardim de São Pedro e a estrada de Ponte de Sor, a recta da tabuleta. Até
a rua de São João. Até o monte da Torre e a barragem da Fonte da Moura, até o
Vale das Mós e a herdade da Cabeça do Coelho. Galveias e todos os
planetas existiam ao mesmo tempo, mas mantinham as suas diferenças essenciais,
não se confundiam: Galveias
era Galveias, o resto do universo
era o resto do universo. E o tempo continuou. Tudo muito de repente. A
coisa sem nome continuou à mesma velocidade desmedida, como um grito. Quando entrou
na atmosfera da terra, já não tinha o planeta inteiro à sua disposição, tinha
aquele ponto certo». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal
Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.
Cortesia de Quetzal/JDACT