sábado, 29 de novembro de 2014

Galveias. José Luís Peixoto. «Galveias e todos os planetas existiam ao mesmo tempo, mas mantinham as suas diferenças essenciais, não se confundiam: Galveias era Galveias, o resto do universo era o resto do universo»

jdact

«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»

Janeiro de 1984
«Entre todos os lugares possíveis, foi naquele ponto certo. O serão ia adiantado e sem lua, só estrelas geladas a romperem o opaco do céu, espetadas a partir de dentro. Galveias descaía lentamente para o sono, os pensamentos evaporavam-se. A escuridão era muito fria. Ao longo das ruas desertas, os candeeiros entornavam cones de luz amarela, luz fosca, engrolada. Passavam minutos e quase podia haver silêncio, mas os cães não deixavam. Ladravam à vez, de uma ponta da vila à outra. Cães novos, sozinhos em quintais, a gritarem latidos que terminavam em uivos; ou rafeiros moribundos de sarna, encostados ao lado de fora de um muro e a levantarem a cabeça apenas para lamentar a noite, revoltados e fracos. Se alguém estivesse a prestar atenção àquela conversa , talvez enquanto adormecia entre lençóis de flanela, seria capaz de distinguir a voz de cães maiores e mais pequenos, cães ariscos, nervosos, estridentes ou de voz grossa, gutural, animais pesados como bois. E um cão lá longe, a ladrar sem pressa, o som do seu discurso alterado pela distância, erosão invisível; e um cão aqui perto, demasiado perto, a raiva do bicho quase a levantar uma espertina no peito; mas depois um cão noutra ponta da vila e outro noutra e outro noutra, cães infinitos, como se desenhassem um mapa de Galveias e, ao mesmo tempo, assegurassem a continuação da vida e, desse jeito, oferecessem a segurança que faz falta para se adormecer. Lá do alto, do cimo da capela de São Saturnino, Galveias era como as brasas de um lume a apagar-se, cobertas de cinza e imperturbáveis. Mesmo como as brasas de um lume, certas chaminés largavam fios de fumo muito direitos: gente que ainda estava acordada, a espicaçar restos de fogo com conversas ou cismas. Mas as casas, noite e janeiro, firmavam-se no chão, faziam parte dele. Rodeada por campos negros, pelo mundo, Galveias agarrava-se à terra.
No espaço, numa solidão de milhares de quilómetros onde parecia ser sempre noite, a coisa sem nome deslocava-se a uma velocidade impossível. O seu sentido era recto. Planetas, estrelas e cometas pareciam observar a decisão inequívoca com que avançava. Eram uma assembleia muda de corpos celestes a julgar com os olhos e com o silêncio. Ou, pelo menos, essa impressão era provável porque a coisa sem nome atravessava a lonjura do espaço com uma velocidade de tal ordem, de tal indiferença e desapego que todos os astros pareciam estáticos e severos por comparação, todos pertenciam a uma imagem nítida e pacífica. Assim, o mesmo universo que a lançara, que a insuflara de força e direcção, assistia suspenso ao seu percurso. Existia o ponto de onde tinha partido, mas cada segundo destruía um pouco mais a memória desse lugar. Aquela sucessão de instantes compunha um tempo natural, isento de explicações. Passado sim, futuro sim, no entanto aquele presente impunha realidade, era composto apenas por ambições límpidas. E nem a violência que a coisa sem nome fazia ao rasgar caminho conseguia sobrepor-se à tranquilidade da sua passagem, distante de tudo e, mesmo assim, integrada numa arrumação cósmica, simples como respirar. Avisados por um alerta secreto, os cães calaram-se durante um instante que não dava mostras de fim. O fumo das chaminés paralisou-se ou, se continuou, seguiu uma linha imperturbável, sem sobressaltos. Até o vento, que se entretinha apenas com o barulho de alisar as coisas, pareceu conter-se. Esse silêncio foi tão absoluto que suspendeu a acção do mundo. Como se o tempo soluçasse, Galveias e o espaço partilharam a mesma imobilidade.
E até aqueles que estavam sozinhos nas suas casas, esparramados numa soneira ou distraídos na última tarefa do dia: pousar o púcaro de esmalte no armário, esticar o dedo para desligar a televisão, descalçar as botas. Todos mantiveram a sua posição única e todos ficaram parados no acto que os ocupava. Até a Lua, onde quer que estivesse, invisível naquela noite. Até o adro da igreja, lá no alto, com vista para a Deveza, imóvel como a estrada de Avis. E os campos em redor, trevas arborizadas, a estenderem-se até à Aldeia de Santa Margarida, conforme se sabe, e imóveis também. Até o terreiro. Até o jardim de São Pedro e a estrada de Ponte de Sor, a recta da tabuleta. Até a rua de São João. Até o monte da Torre e a barragem da Fonte da Moura, até o Vale das Mós e a herdade da Cabeça do Coelho. Galveias e todos os planetas existiam ao mesmo tempo, mas mantinham as suas diferenças essenciais, não se confundiam: Galveias era Galveias, o resto do universo era o resto do universo. E o tempo continuou. Tudo muito de repente. A coisa sem nome continuou à mesma velocidade desmedida, como um grito. Quando entrou na atmosfera da terra, já não tinha o planeta inteiro à sua disposição, tinha aquele ponto certo». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.

Cortesia de Quetzal/JDACT