Resumo
«Qual
será o papel das emoções no processo de tomada de decisão racional e no processo
de tomada de decisão judicial, enquanto espécie pertencente ao gênero? A
possibilidade de se colocar comprometidamente esta pergunta implica no
enfrentamento crítico da posição tradicional, ancorada na tradição filosófica
ocidental, que assume uma dualidade estrutural entre as emoções e a razão. As
emoções, sustentam, devem ser dominadas ou, preferencialmente, estripadas do
debate racional, revelando-se especialmente nocivas no âmbito da deliberação pública.
A decisão racional é também uma decisão não-emotiva e, portanto, um bom
julgador, para além de ser uma pessoa intelectualmente dotada de conhecimentos
sólidos sobre as leis e sobre as coisas do mundo, deve ser capaz de suprimir
suas emoções. No entanto, questiona Nussbaum, será possível decidir um
caso com justiça sem a convocação das emoções? Os juízes não são neutros
e o seu julgamento convoca-envolve-produz emoções (racionais e irracionais).
As emoções racionais não devem ser suprimidas, elas devem ser assumidas em sua
inevitabilidade e importância no âmbito do processo racional de decisão e no
âmbito da decisão judicial».
O
papel das obras literárias e das emoções racionais no processo de tomada de decisão
judicial.
«É familiar ao senso comum a assunpção da
razão e das emoções como dimensões antagónicas, em constante tensão. As emoções
são, sob esta divisão asséptica, forças incontroláveis que conduzem os homens a
mares bravios ou a calmarias, que se sucederiam ininterrupta e inadvertidamente,
condicionada a sua felicidade ou infelicidade por factores exteriores ao
eu-sujeito. Na outra face da moeda ter-se-ia a razão; luminosa, capaz de
levantar o véu que obscurece a verdade, de acedê-la e de conduzir-nos ao gozo da felicidade imperturbável dos conceitos
e das matemáticas. O predomínio da razão sobre a emoção teria a
potencialidade de orientar a acção humana para o bem e, em última análise, nos
conduziria à realidade de uma comunidade de iguais. Platão, exemplarmente,
compreendia que o acesso à verdade pressuporia o cultivo da faculdade da alma
que mais nos assemelhava aos deuses (a razão) e o afastamento do corpo.
A alma imortal dos homens entregues à satisfação dos sentidos ganharia
corporalidade, impedindo-os de aceder à verdade encerrada no mundo inteligível.
Todos os seres pertencentes ao género humano possuíam uma alma imortal, assumia
Platão, constituída por diferentes faculdades. A alma epitética, comum às
plantas, aos animais e aos homens, relacionar-se-ia aos instintos e aos apetites
(baixo ventre). A alma irascível, comum aos homens e aos animais, relacionar-se-ia
à vontade como virtude cavalheiresca (peito). Para além, os seres humanos
seriam dotados de uma faculdade exclusiva alcunhada de alma logística, a alma
logística deveria preponderar sobre as demais, nos capacitando a todos, ainda
que em potência, a aceder às verdades encerradas no mundo inteligível.
O acesso à verdade estava condicionado à
racionalização das emoções, dos ímpetos, dos instintos e da vontade, ou seja,
ao abandono do corpo e ao cultivo da recta razão. As guerras e os combates,
sustentava Platão, estavam imediatamente relacionados à acumulação de riquezas,
que servem única e exclusivamente para satisfazer os desejos e caprichos da
carne. A restrição da vida à dimensão corpórea condenaria o homem a uma
eternidade de sombras e de ilusão. A razão, assim como o cocheiro de uma
carruagem, deveria definir a trajectória e guiar com mão firme os impulsos, as
paixões e as emoções, sob pena de não mais conseguir corrigir o curso da alma
arrastada pelos apelos da carne e da satisfação hedonista dos sentidos. A ataraxia
seria o resultado necessário do domínio das emoções pela razão, que tudo
penetra e revela um mundo estruturado sob leis ontológico-substancialmente
cunhadas. As investigações platónicas, como sabemos, estavam ancoradas sob uma perspectiva
mítico-teológica do mundo e das coisas do mundo. No cerne das afirmações acerca
da dualidade de mundos e de justiças, da busca pela verdade encerrada num plano
transcendente de inteligibilidade, da luta perpétua da alma contra o corpo,
como condição necessária para o acesso à verdade, estava a crença em um mundo
concebido enquanto dado
(ontológico-substancialmente concebido). Um mundo constituído por (enquanto)
leis eternas e imutáveis, criadas em tempos imemoriais e que incidiriam sobre
todos os seres, irremediavelmente. O homem, naquele contexto cultural cunhado
pela fatalidade, nada podia fazer em face daquilo que é, cabendo-lhe somente a atitude de espantar-se em face
do iniludível e do inevitável». In Ana Carolina Faria Silvestre, As
Emoções Racionais e a Realização Prática do Direito à Luz da Proposta de Martha
Nussbaum, O Papel das Obras Literárias e das Emoções Racionais no Processo de Tomada
de Decisão Judicial, Universidade de Coimbra, Revista de Estudos Jurídicos, Ano. 15, n.º 22, 2011.
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