A época contemporânea. Introdução
A redefinição do público e do privado (1820-1950)
«(…) A noção burguesa de vida privada está ainda associada,
no imaginário oitocentista, à expressão dos sentimentos, fundamento da coesão
familiar, sendo entendida como o lugar por excelência da materialização dos
afectos, base da felicidade individual, enquanto se considera a vida pública
controlada pela razão. A literatura romântica saberá explorar sabiamente esse
filão e alimentar sonhos cor-de-rosa de amor e de felicidade eternas,
deixando-nos nos romances, e em tantas obras de qualidade discutível, episódios
que identificam, quase invariavelmente, amor com casamento e intimidade com
felicidade. A cena de interior descrita por Carlos Moura Cabral contém todos esses
ingredientes e, provavelmente, terá tanto de verídico como de utopia
prospectiva. A simplicidade estilística de que se socorre o autor, próxima da
linguagem cinematográfica, confere à narrativa autenticidade, como se
retratasse uma cena do quotidiano, retirada da realidade social, sem ter em
linha de conta o estatuto de representação simbólica do texto literário. Ora,
história e literatura não se confundem nem identificam e, embora sejam duas
expressões narrativas próximas, a ficção literária traduz a capacidade criativa
e o imaginário do seu autor a partir de um dado contexto social e cultural. Ao
historiador compete ler criticamente o romancista com o rigor dos métodos
científicos da pesquisa e da análise documental, e utilizar a literatura como um
registo ficcionado de aproximação ao conhecimento da realidade sociológica que
se oculta por entre o emaranhado das intrigas passionais e da crítica de
costumes. Vêm estas palavras a propósito da tentação de reconstruir a história
da vida privada de 1820 a 1950 a partir das fontes literárias, aparentemente tão
credíveis em testemunhos de época, contrastando em absoluto com a desesperante
pobreza das fontes históricas, escritas ou iconográficas. As dificuldades
práticas da pesquisa prendem-se com a insuficiência dos documentos quando o
objecto de investigação está para além dos discursos e dos modelos culturais
que transparecem através das instituições e dos comportamentos. Como captar o
silêncio, o íntimo, as nuances dos afectos,
o que não se diz e permanece oculto?
Como aceder aos monólogos interiores, às orações, aos medos, aos desejos e aos sonhos de vida futura? Que documentos interrogar? Os
arquivos privados são raros e socialmente bem determinados. Os arquivos
públicos e, em particular, as tradicionais fontes políticas ou administrativas,
são omissas ou lacunares sobre o tema, excepto no que concerne ao debate
ideológico sobre a instituição da família, considerada o epicentro da vida
privada e a unidade primária da vida social e afectiva. Quanto aos arquivos
judiciais que nos elucidam sobre o lado sombrio das relações humanas e a sua
conflitualidade interna, continuam, no nosso país, a ser pouco explorados, em
termos históricos, permanecendo, em grande parte, como um continente por
desbravar.
Nestas circunstâncias, o historiador deve socorrer-se de
todas as fontes possíveis ao seu alcance: interrogar minuciosamente as
estatísticas e relatórios disponíveis; explorar os textos religiosos,
normativos, científicos ou literários; utilizar documentos gráficos como a
publicidade, a fotografia, a iconografia, ou tão-só, os objectos materiais do
quotidiano dispersos por museus e demais instituições museológicas...
Compete-lhe, ainda, prestar atenção às pequenas
coisas que tanto fascínio exerciam sobre os homens e as mulheres de oitocentos,
muitas das quais chegaram até nós religiosamente guardadas por familiares ou
integradas em colecções particulares, como se de relíquias se tratasse, sejam
cartas amarelecidas Pelo tempo, sejam postais ilustrados, jóias, estampas, cartões
de felicitação ou tantas outras pequeninas minudências.
Discretamente, com a prudência que a pesquisa histórica aconselha, entremos no
círculo estreito da vida privada, essa fortaleza
forrada a rendas, como a qualifica Michelle Perrot, solidamente resguardada
da intrusão alheia…» In JoséMattoso, História da Vida Privada em
Portugal, A Época Contemporânea, coordenação de Irene Vaquinhas, Círculo de
Leitores e Temas e Debates, 2011, ISBN 978-989-644-149-4.
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