quinta-feira, 6 de novembro de 2014

História da Vida Privada em Portugal José Mattoso. «Para que quero eu olhos senhora Santa Luzia. Para que quero eu olhos senhora Santa Luzia. Se eu não vejo o meu amor nem de noite, nem de dia, senhora Santa Luzia»

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A época contemporânea. Introdução
A redefinição do público e do privado (1820-1950)
«(…) A noção burguesa de vida privada está ainda associada, no imaginário oitocentista, à expressão dos sentimentos, fundamento da coesão familiar, sendo entendida como o lugar por excelência da materialização dos afectos, base da felicidade individual, enquanto se considera a vida pública controlada pela razão. A literatura romântica saberá explorar sabiamente esse filão e alimentar sonhos cor-de-rosa de amor e de felicidade eternas, deixando-nos nos romances, e em tantas obras de qualidade discutível, episódios que identificam, quase invariavelmente, amor com casamento e intimidade com felicidade. A cena de interior descrita por Carlos Moura Cabral contém todos esses ingredientes e, provavelmente, terá tanto de verídico como de utopia prospectiva. A simplicidade estilística de que se socorre o autor, próxima da linguagem cinematográfica, confere à narrativa autenticidade, como se retratasse uma cena do quotidiano, retirada da realidade social, sem ter em linha de conta o estatuto de representação simbólica do texto literário. Ora, história e literatura não se confundem nem identificam e, embora sejam duas expressões narrativas próximas, a ficção literária traduz a capacidade criativa e o imaginário do seu autor a partir de um dado contexto social e cultural. Ao historiador compete ler criticamente o romancista com o rigor dos métodos científicos da pesquisa e da análise documental, e utilizar a literatura como um registo ficcionado de aproximação ao conhecimento da realidade sociológica que se oculta por entre o emaranhado das intrigas passionais e da crítica de costumes. Vêm estas palavras a propósito da tentação de reconstruir a história da vida privada de 1820 a 1950 a partir das fontes literárias, aparentemente tão credíveis em testemunhos de época, contrastando em absoluto com a desesperante pobreza das fontes históricas, escritas ou iconográficas. As dificuldades práticas da pesquisa prendem-se com a insuficiência dos documentos quando o objecto de investigação está para além dos discursos e dos modelos culturais que transparecem através das instituições e dos comportamentos. Como captar o silêncio, o íntimo, as nuances dos afectos, o que não se diz e permanece oculto? Como aceder aos monólogos interiores, às orações, aos medos, aos desejos e aos sonhos de vida futura? Que documentos interrogar? Os arquivos privados são raros e socialmente bem determinados. Os arquivos públicos e, em particular, as tradicionais fontes políticas ou administrativas, são omissas ou lacunares sobre o tema, excepto no que concerne ao debate ideológico sobre a instituição da família, considerada o epicentro da vida privada e a unidade primária da vida social e afectiva. Quanto aos arquivos judiciais que nos elucidam sobre o lado sombrio das relações humanas e a sua conflitualidade interna, continuam, no nosso país, a ser pouco explorados, em termos históricos, permanecendo, em grande parte, como um continente por desbravar.
Nestas circunstâncias, o historiador deve socorrer-se de todas as fontes possíveis ao seu alcance: interrogar minuciosamente as estatísticas e relatórios disponíveis; explorar os textos religiosos, normativos, científicos ou literários; utilizar documentos gráficos como a publicidade, a fotografia, a iconografia, ou tão-só, os objectos materiais do quotidiano dispersos por museus e demais instituições museológicas... Compete-lhe, ainda, prestar atenção às pequenas coisas que tanto fascínio exerciam sobre os homens e as mulheres de oitocentos, muitas das quais chegaram até nós religiosamente guardadas por familiares ou integradas em colecções particulares, como se de relíquias se tratasse, sejam cartas amarelecidas Pelo tempo, sejam postais ilustrados, jóias, estampas, cartões de felicitação ou tantas outras pequeninas minudências. Discretamente, com a prudência que a pesquisa histórica aconselha, entremos no círculo estreito da vida privada, essa fortaleza forrada a rendas, como a qualifica Michelle Perrot, solidamente resguardada da intrusão alheia…» In JoséMattoso, História da Vida Privada em Portugal, A Época Contemporânea, coordenação de Irene Vaquinhas, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2011, ISBN 978-989-644-149-4.


Cortesia de Temas e Debates/JDACT