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A Revolução das
Letras. A ordem alfabética (Tanto Fazia…)
«(…) Desde pequenas que ensinavam às letras a Ordem
Alfabética. Quando elas perguntavam às letras grandes porque é que os ás haviam de ser sempre os primeiros e
os zês sempre os últimos, e não
outros (por exemplo, os pês os primeiros
e os tês os últimos, ou os ésses, ou os jotas, ou outros quaisquer), as letras grandes diziam-lhes que
tanto fazia. Na verdade, tanto fazia. Mas o facto é que os ás é que eram sempre os primeiros e os zês sempre os últimos…
As Contas das Letras
Mas havia mais: havia duas espécies de letras, as vogais por
um lado, que eram só cinco, e as consoantes, a chamada esmagadora maioria, do outro lado. As privilegiadas eram as
vogais. Na palavra privilegiado: por exemplo (isto eram as contas que as letras faziam),
só os is apareciam três vezes e o a uma e o e e o o também uma cada
um; e embora a palavra privilegiado tivesse na sua Constituição seis vogais e
outras seis consoantes, das vogais só ficava de fora o u (uma semivogal!), ao passo que das consoantes ficavam de fora, ao
todo, 13! Já na palavra trabalhar
era o contrário; havia seis consoantes e só uma vogal, o a, que andava de uma sílaba para a outra para parecer que havia lá,
muitas vogais a trabalhar...
O SCRTRD
A certa altura, com o auxílio dos amigos números, todas as
letras começaram a fazer destas contas à vida delas. As vogais podiam entrar em
toda a parte, quer dizer, em todas as palavras, e até tinham palavras só para
elas, e as consoantes não; algumas consoantes, praticamente, nem entravam em
palavras nenhumas, como o xis ou o quê. (E com as palavras sucedia o
mesmo, porque havia palavras que nem sequer havia, como a palavra migol ou a palavra epipabaquígrafo, e outras que só havia lá fora, no estrangeiro,
como a palavra pouce ou as palavras Winston Churchill). A televisão e os
jornais começaram a fazer reportagens e a ouvir as queixas das letras. Ao mesmo
tempo, as consoantes começaram a organizar-se, constituindo-se em scrtrd, que é
um secretariado só constituído por consoantes. Os jornais descobriram dramas
terríveis em algumas frases. Numa frase havia um cê de cedilha e um dê
muito amigos e que não podiam encontrar-se para conversar senão às escondidas,
porque se metia sempre uma vogal no meio deles, como, por exemplo, o i, que se metia sempre no meio deles
na palavra metediço. (Por causa do formato de pau do i e da pintinha de cabelo em cima e por se estar sempre a meter no
meio tinham posto ao i a alcunha de pau de cabeleira!). Aliás, as vogais
tinham tanto medo das consoantes, que eram muitas mais, que só muito raramente
as deixavam andar juntas, e só às de mais confiança como o agá, que era meio vogal...»
In Manuel António Pina, O Têpluquê e Outras Histórias, Ilustrações de
Bárbara Assis Pacheco, Assírio e Alvim, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-37-1157-8.
Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT