Arqueologia na Grande Cidade. 850º Aniversário da reconquista de Lisboa
«(…) Quero começar a
apresentação deste Encontro, confessando que tenho muita pena por não
ter podido aqui apresentar nenhuma investigação original, juntando-me assim ao
notável conjunto de especialistas de história medieval que aqui se reuniram
para tratarem de vários temas relativos à conquista de Lisboa em 1147. Não preciso de explicar as razões
da minha impossibilidade nem as da minha pena. Creio que elas se podem imaginar
facilmente. Quis todavia dar o meu apoio a esta iniciativa, antes de mais pela
amizade que me liga à maior parte dos seus participantes, mas também pelo
inegável interesse do tema e sobretudo pela maneira como os organizadores lhe
imprimiram uma determinada orientação. Creio, ir ao encontro dos seus objectivos
fazendo nesta apresentação do Encontro uma breve reflexão sobre o
significado daquilo mesmo que aqui se procura. A melhor maneira de o tomar
evidente parece-se ser partindo de uma breve comparação da temática
privilegiada pelos autores das comunicações com a maneira como se comemorou há
50 anos o 8º Centenário deste mesmo acontecimento. De facto, em natural
que, sendo então um Centenário pleno e não apenas um aniversário, se tivesse
dado a maior solenidade e o maior relevo às comemorações de então. E todavia,
não ficou delas senão a lembrança de um grande cortejo histórico organizado, se
não me engano, por Leitão de Barros. Não sei se houve também alguma iniciativa
de carácter científico, mas, se existiu, deve ter ficado circunscrita às salas
das Academias, e deve ter consistido antes em algum discurso de
predominantemente laudatório ou meramente evocativo. Não me lembro de nessa
altura se ter apresentado nenhum texto histórico inovador sobre o facto que
então se comemorava. Era esse, de resto, o tom habitual das comemorações
nacionalistas, como se tomou evidente em 1940
e nos anos seguintes: o trabalho científico produzido nessa época tem de se
considerar quase insignificante face ao esforço do governo, que se concentrou,
como se sabe, na Exposição do Mundo Português, na reconstrução de castelos e
nas cerimónias comemorativas que deixaram dezenas de lápides evocativas por
esse país fora. Como é evidente, o propósito de situar os factos históricos no
seu contexto e para os compreender em si mesmos era muito menor do que para
desenvolver em torno deles uma retórica exortatória centrada nas virtudes nacionais,
para desenrolar rituais colectivos de que se esperava como efeito o reforço da coesão
social e política, para explorar e popularizar mitos, muitas vezes de forma
artificial e forçada. Hoje, os rituais e os mitos demasiado presos a glórias
passadas perderam a sua eficácia social, entre outras razões porque o carácter
propagandístico demasiado pronunciado lhes retirava credibilidade e revelava
propósitos que não podem, hoje, deixar de se considerar alienantes. O uso e
abuso dos mitos e glórias nacionais tomou-se assim um instrumento de degradação
da sua própria eficácia social. Hoje deixou de ser possível falar do passado sem
partir de uma análise objectiva historicamente fundamentada e desprendida de intenções
ideológicas. Os mitos e rituais continuam, obviamente, a constituir uma
componente fundamental da vida social, mas deixaram de se basear nas glórias
passadas. Não sabemos bem quais são esses mitos: talvez um deles seja o de que
a nossa salvação colectiva depende da integrarão na Europa comunitária. Seja
como for, os sucessos do passado deixaram de ser penhor das vitórias que desejamos
alcançar no momento presente. O presente impõe-se-nos como um desafio e obriga-nos
a sermos racionais e realistas.
Nesta conjuntura,
apercebemo-nos cada vez mais de que a compreensão do passado se tomou ela
própria forma privilegiada de construir o presente. Parte-se do princípio de que
a percepção dos factores de que dependeu outrora o desenrolar dos
acontecimentos decisivos no devir histórico permitirá também orientar as nossas
escolhas perante a complexa realidade que nos envolve. Apercebemo-nos de que há
nela fenómenos e estruturas que só se podem compreender devidamente quando os
colocamos num contexto histórico. Acontece isto mesmo, até para factos tão longínquos
como a conquista de Lisboa em 1147. Trata-se, na verdade, de um
acontecimento decisivo não só para a história nacional, mas também para a
história europeia. É preciso analisá-lo e tentar compreendê-lo em todos os seus
aspectos e condicionantes, assim como em todas as suas consequências.
Tal é a melhor
justificação para o Encontro que hoje iniciamos. As comunicações previstas
concentram-se na sua quase totalidade sobre o mundo e a época islâmicas. Também
este facto é significativo de uma alteração fundamental em relação com o que
aconteceu há cinquenta anos. Nessa altura, o que chamava a atenção era o ponto
de vista dos conquistadores, e portanto a inclusão da cidade no espaço cristão,
assim como o papel que passou a desempenhar na construção do País. Em 1947
considerava-se que a conquista de Lisboa tinha sido como que um ponto zero. Um
começo absoluto. Reduzia-se, assim, a nada, ou a aspectos puramente negativos o
passado muçulmano. A vitória sobre os mouros teria esmagado por completo o
passado islâmico. Portugal não devia nada à civilização árabe. Pelo
contrário, a construção da nação só teria sido possível devido ao esmagamento
da barbárie sarracena.
Hoje considera-se, com razão, que esta interpretação da conquista de
Lisboa é puramente absurda. Em História não há começos absolutos. A ignorância histórica
acerca do passado muçulmano, que se verifica na historiografia portuguesa é,
portanto, demasiado gritante para que não se considere urgente preenchê-la. Mas
a quase total ausência de uma tradição científica nesta área tomou a tarefa
especialmente difícil e morosa. Foram necessário passarem mais de vinte anos
depois do 25 de Abril, ou seja depois da data em que desapareceu a
opressão política, consciente ou inconsciente, sobre a investigação
universitária, para que finalmente se pudesse reunir um número considerável de
conhecedores capazes de trabalharem sobre esta área. Esperamos, pois, que este Encontro
constitua um importante contributo para se desenvolverem os estudos e os conhecimentos
nesta área tão carenciada». In Paulo Pereira, José Mattoso, Arqueologia
na Grande Cidade, Lisboa, Encruzilhada de Muçulmanos, Judeus e Cristãos (850º
aniversário da reconquista de Lisboa), Projectos Portos Antigos do
Mediterrâneo, Acção Piloto Portugal/Espanha/Marrocos, FEDER, Edições
Afrontamento, Porto, 2001, ISSN 0872-2250.
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