Enquadramento
histórico-social
«Todas as fronteiras são
artificiais, e as fronteiras cronológicas não constituem excepção a esta regra.
É sempre arbitrária a fixação de uma data certa para início de um movimento
estético ou literário, pois, como ensinou Marx, o modo de produção da vida material condiciona o processo social,
político e espiritual da vida; não é a consciência dos homens que determina a sua
essência, mas, ao contrário, a sua essência social é que determina a sua
consciência. A estrutura económica da sociedade, definida pelas relações materiais
de produção, constitui assim a base sobre a qual a literatura e a arte se
constroem, o que as torna portanto inseparáveis do processo histórico, e incompreensíveis
fora dele, não em termos puramente mecânicos mas numa perspectiva dialéctica,
em que arte e realidade, num jogo de acção e reacção contínuas e recíprocas,
acompanham e ao mesmo tempo promovem o seu incessante desenvolvimento. Como, a
propósito de Garrett e do seu contributo para a restauração da cena nacional,
escreveu António José Saraiva, pôr o
problema do teatro nacional é nada menos que pôr todo o problema da estrutura
da sociedade portuguesa. E esta, no terço derradeiro do século XIX, que
elegemos para marco inicial do estudo, estava longe de suscitar uma renovação profunda
da arte dramática (não só ao nível do texto escrito mas ainda, mais amplamente,
da sua produção cénica), a qual, pela mesma época, noutros países se estava a
processar. O projecto sócio-económico subjacente à revolução liberal
desencadeada em 1820, que o golpe de
Estado da Vila-Francada deteve
em 1823, só a partir de 1832 pôde começar a realizar-se, com as
leis de Mouzinho da Silveira e Joaquim António de Aguiar, que
respectivamente vieram abolir os direitos senhoriais, reorganizar as finanças
públicas e a divisão administrativa e extinguir as ordens religiosas, cujos bens
foram nacionalizados. Uma burguesia de proprietários rurais, que aspirava a
nobilitar-se e que constituía, no vasto corpo da nação, uma minoria privilegiada,
ascende ao poder. Em 1835
estabelece-se o princípio da escolaridade obrigatória, criam-se nos anos seguintes
os liceus, as escolas médicas e politécnicas.
Em
1838 funda-se a primeira associação
operária. Mas o governo setembrista
de esquerda é derrubado, em 1840,
pela reacção encabeçada por Costa Cabral, que defende a agiotagem, os
interesses do clero e toma várias medidas repressivas. Derrotado em 1846, Costa Cabral retoma o poder em 1849, perdendo-o definitivamente, dois
anos depois, com o pronunciamento de Saldanha. Com a Regeneração
inicia-se, em 1851, a política dos melhoramentos materiais. Um tímido surto
industrial conhece, em 1856, graças
à construção da rede ferroviária e estradal, um novo impulso, de que, no entanto,
apenas irão beneficiar os capitais nacionais e estrangeiros (sobretudo
ingleses) e os grandes agrários, e que, de resto, as estruturas arcaicas do
país a breve trecho condenam ao imobilismo. Continuam por resolver os problemas
das camadas sociais menos favorecidas, marginalizadas do processo político, a pequena
burguesia, o artesanato, a massa campesina, a que virá juntar-se mais tarde um
incipiente proletariado industrial, o que, por vezes, dá origem a movimentos populares
de descontentamento, como a Janeirinha
(1868).
A industrialização do país, encetada em 1835
com a introdução da máquina a vapor, processa-se através de saltos bruscos: um
ano depois de a Associação Internacional dos Trabalhadores lançar em Portugal
as suas raízes, desencadeia-se, em 1872,
a primeira greve; e, em 1876, uma
grave crise financeira provoca a falência de vários bancos (em menos de vinte anos,
de 1858 para 1875, o número de estabelecimentos bancários subira de 3 para 51),
um ano após a fundação do Partido Operário Socialista, que irá realizar
em 1879 o seu primeiro Congresso.
Certos acontecimentos exteriores, a revolução espanhola de 1868, a unificação da Itália, a guerra franco-prussiana, a Comuna
de Paris, repercutem-se no país, onde uma consciência republicana (de que as
comemorações do tricentenário de Camões, em 1880, foram o agente deflagrador) começa a formar-se, sob a
influência de alguns intelectuais esclarecidos e insatisfeitos. O cansaço
evidente das instituições monárquicas, a reacção nacional ao Ultimato inglês de 1890,
que veio travar o sonho quimérico de expansão ultramarina, a consequente crise
económica e financeira, desembocaram na abortada revolta de 31 de Janeiro de 1891,
no Porto. Mas este movimento para a implantação da República, apoiado pela
acção de numerosas associações pedagógicas e sindicais, e subterraneamente pela
actividade de organizações secretas e das lojas maçónicas, era já irreversível:
em 1901 o deputado Afonso Costa
apresenta na Câmara uma moção declarando que o povo português carece de substituir sem demora as actuais
instituições políticas por outras diversas, de feição republicana; os
surtos grevistas sucedem-se (1903,
1906, 1907); mas, neste último ano, a ditadura de João Franco,
cerceando drasticamente as liberdades, iria precipitar os acontecimentos: o rei
Carlos I e o príncipe herdeiro Luís Filipe são assassinados em 1908, no ano seguinte o Partido
Republicano reúne em Setúbal o seu congresso, que encarrega o Directório de
apressar o movimento revolucionário para a instauração do novo regime, e em 5 de
Outubro de 1910 a proclamação da República é saudada como a
abertura de um novo capítulo na história de Portugal». In Luiz Francisco Rebello, O
Teatro Naturalista e Neo-romântico (1870-1910), Biblioteca Breve, 16, Instituto
Camões, Instituto de Cultura Portuguesa, Oficinas Gráficas da Livraria
Bertrand, 1978.
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