terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «Previa-se que a duração de uma viagem de Angola a Pernambuco, com condições favoráveis, fosse de trinta e cinco dias, à Baía quarenta e ao Rio de Janeiro cinquenta. Mas se o navio ficava preso nas calmarias equatoriais…»

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Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa Americana
«(…) Aí tudo lhes faltava. A alimentação continuava a ser má e insuficiente, fermentada pelo calor e pelo azebre das caldeiras de cobre em que era cozinhada. A água, escassa, era salobra, alterada pela má qualidade do vasilhame. A pouca ou nenhuma higiene, juntamente com o intenso calor e a humidade salitrosa, ateavam as epidemias de que nem os marinheiros escapavam. O próprio ar, pouco ou nada ventilado, tornava o ambiente dos porões denso e pestilento; tal como a luz, entrava apenas pelas grades da escotilha, ou por uma ou outra fenda. Os capitães dos navios tinham consciência de quanto era prejudicial esta situação. Querendo de algum modo minimizar as perdas, mais por interesse do que por humanidade, entre outras medidas, mandavam limpar e esfregar a coberta duas vezes por semana com vinagre e permitiam que os escravos, divididos em grupos, viessem a ferros até ao convés para receber ar fresco. Nessas ocasiões, davam-lhes uma porção de aguardente e, para os obrigarem a fazer algum exercício mandavam-nos cantar e dançar. Recomendavam à tripulação, igualmente, que nos dias quentes e calmos, se prendesse no cesto da gávea uma manga de pano que, passando pela grade da escotilha, renovasse o ambiente. Todas essas providências eram, no entanto, esforços que na prática se revelavam inúteis para afastar o ar doentio e travar o avanço das epidemias que os alimentos estragados, a ardência do clima e a imundície favoreciam.
Previa-se que a duração de uma viagem de Angola a Pernambuco, com condições favoráveis, fosse de trinta e cinco dias, à Baía quarenta e ao Rio de Janeiro cinquenta. Mas se o navio ficava preso nas calmarias equatoriais, o percurso até ao Recife podia durar cinquenta dias. Quanto mais longas fossem as viagens, piores se tornavam. As embarcações que iam da Guiné e da região de Daomé para a Baía beneficiavam de viagens mais rápidas. Nas das outras regiões, que de preferência se dirigiam para o sul do Brasil, os escravos padeciam a mais longa, cruel e mortífera travessia do oceano, a que provocava mais vítimas e maiores tragédias. Elias Corrêa descreve a experiência que viveu na sua viagem para o Rio de Janeiro em que os mantimentos e a aguada embarcados foram de tal modo preteridos ao embarque de um maior número de escravos que, ao vigésimo dia de mar, já só era distribuída meia ração de água, chegando a situação ao ponto de se recusarem os remédios aos doentes pela sua falta. Quando aos sessenta dias de viagem se avistou terra, foram obrigados a aportar à capitania do Espírito Santo por falta total de mantimentos. Todavia a farinha de pau comprada neste porto para suprir a que o navio deixou de embarcar, estava tão podre e cheia de bicho que causou uma epidemia terrível e muitas mortes.
Faleciam não só vitimados pelas doenças, mas também devido ao desespero em que se encontravam e que os levava na primeira oportunidade ao suicídio. Neste acto, acontecia arrastarem consigo para o mar os seus companheiros de ferros e, por vezes, até os tripulantes do navio, dando assim resposta ao desespero que os minava. O seu desejo de morrer era tão forte que, faltando-lhes outros meios, se recusavam a comer. Nestes casos, se mesmo depois de castigados mantinham a sua recusa, abriam-lhes a boca à força e obrigavam-nos a engolir os alimentos. Este procedimento dos escravos era acompanhado, com frequência, por manifestações doentias de carácter psicológico designadas banzo e apresentavam como principal sintoma uma nostalgia angustiante que, no dizer de Oliveira Mendes, constituía uma paixão da alma a que se entregavam e que so dão por extinta com a morte». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Colibri/JDACT