Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa
Americana
«(…) Aí tudo lhes faltava. A alimentação continuava a ser má e
insuficiente, fermentada pelo calor e pelo azebre das caldeiras de cobre em que
era cozinhada. A água, escassa, era salobra, alterada pela má qualidade do
vasilhame. A pouca ou nenhuma higiene, juntamente com o intenso calor e a
humidade salitrosa, ateavam as epidemias de que nem os marinheiros escapavam. O
próprio ar, pouco ou nada ventilado, tornava o ambiente dos porões denso e
pestilento; tal como a luz, entrava apenas pelas grades da escotilha, ou por
uma ou outra fenda. Os capitães dos navios tinham consciência de quanto era
prejudicial esta situação. Querendo de algum modo minimizar as perdas, mais por
interesse do que por humanidade, entre outras medidas, mandavam limpar e esfregar
a coberta duas vezes por semana com vinagre e permitiam que os escravos,
divididos em grupos, viessem a ferros até ao convés para receber ar fresco.
Nessas ocasiões, davam-lhes uma porção de aguardente e, para os obrigarem a
fazer algum exercício mandavam-nos cantar e dançar. Recomendavam à tripulação,
igualmente, que nos dias quentes e calmos, se prendesse no cesto da gávea uma
manga de pano que, passando pela grade da escotilha, renovasse o ambiente.
Todas essas providências eram, no entanto, esforços que na prática se revelavam
inúteis para afastar o ar doentio e travar o avanço das epidemias que os alimentos
estragados, a ardência do clima e a imundície favoreciam.
Previa-se que a duração de uma viagem de Angola a Pernambuco, com
condições favoráveis, fosse de trinta e cinco dias, à Baía quarenta e ao Rio de
Janeiro cinquenta. Mas se o navio ficava preso nas calmarias equatoriais, o
percurso até ao Recife podia durar cinquenta dias. Quanto mais longas fossem as
viagens, piores se tornavam. As embarcações que iam da Guiné e da região de
Daomé para a Baía beneficiavam de viagens mais rápidas. Nas das outras regiões,
que de preferência se dirigiam para o sul do Brasil, os escravos padeciam a
mais longa, cruel e mortífera travessia do oceano, a que provocava mais vítimas
e maiores tragédias. Elias Corrêa descreve a experiência que viveu na sua
viagem para o Rio de Janeiro em que os mantimentos e a aguada embarcados foram
de tal modo preteridos ao embarque de um maior número de escravos que, ao vigésimo
dia de mar, já só era distribuída meia ração de água, chegando a situação ao
ponto de se recusarem os remédios aos doentes pela sua falta. Quando aos
sessenta dias de viagem se avistou terra, foram obrigados a aportar à capitania
do Espírito Santo por falta total de mantimentos. Todavia a farinha de pau comprada neste porto para suprir a que o navio deixou
de embarcar, estava tão podre e cheia de bicho que causou uma epidemia terrível
e muitas mortes.
Faleciam não só vitimados pelas doenças, mas também devido ao desespero
em que se encontravam e que os levava na primeira oportunidade ao suicídio.
Neste acto, acontecia arrastarem consigo para o mar os seus companheiros de
ferros e, por vezes, até os tripulantes do navio, dando assim resposta ao
desespero que os minava. O seu desejo de morrer era tão forte que,
faltando-lhes outros meios, se recusavam a comer. Nestes casos, se mesmo depois
de castigados mantinham a sua recusa, abriam-lhes a boca à força e obrigavam-nos
a engolir os alimentos. Este procedimento dos escravos era acompanhado, com
frequência, por manifestações doentias de carácter psicológico designadas banzo e apresentavam como principal
sintoma uma nostalgia angustiante que, no dizer de Oliveira Mendes, constituía
uma paixão da alma a que se entregavam e
que so dão por extinta com a morte». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de
Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN
978-972-772-957-9.
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