terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Garrett. De Fingimentos e Conclusões. Leituras. «Nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por imperfeita»

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«(…) Gomes Amorim, o seu dedicado biógrafo e confessado discípulo, sai à liça dos comentários que lhe tildam o mestre de vaidoso mas não nos tira as dúvidas quanto à verdadeira autoria do inesquecível elogio: De quantos elogios acusam o autor de ter tecido a si próprio, e posto às costas dos seus editores, se o prólogo da segunda edição das viagens foi escrito por ele, nenhum revela maior vaidade, segundo o juízo dos contemporâneos; em meu humilde conceito, porém, está a mais cabal pintura que de tamanho engenho se podia obter em tão pequena tela. Tudo que diz de si é de uma verdade tão indiscutível, que só há a lastimar o não ter sido de outra pena aquele elogio merecidíssimo, se com efeito o produziu a sua. Gomes Amorim não nos tira aqui as dúvidas sobre a autoria do prólogo. Mas parece inclinado a admitir que assim seja na lástima que manifesta e talvez ainda mais no juízo que emite sobre a verdade do que ali se diz. Pessoalmente, confesso que nem sequer chego ao ponto de lastimar que o elogio tenha saído da pena do próprio Garrett. Dou graças aos deuses pelo facto de não me sentir obrigada a defender-lhe a honra pelante os detractores, e à distância de século e meio lembro que o escritor não fazia mais, nem menos, do que o seu mestre e modelo Camões tinha já feito quase três séculos antes: ter a consciência do seu imenso valor de escritores e a coragem de afirmá-lo, alto e bom som, preto no branco, na praça pública das invejas ou das indiferenças (Outros, depois, como Fernando Pessoa e Jorge de Sena hão-de seguir-lhes o gesto e não com menos verdade e pertinência).
Fica-nos, pois, não a lástima mas, pelo contrário, o agradecimento de um texto que, como diz Gomes Amorim, e com ele assentimos plenamente, nos dá, para sempre, uma cabal pintura do engenho garrettiano. Mais adiante, voltarei à forma como esta cabal pintura sintetiza, de forma exemplar, o percurso do escritor e a sua prática literária dando-nos, ao mesmo tempo, pistas valiosíssimas para a leitura da obra. Quero, todavia, antes recordar como, afinal, apenas dois anos antes deste prólogo, tinham os seus contemporâneos visto aparecer nas páginas do Universo Pittoresco, na secção Biographia, um outro texto onde, em cerca de doze longas páginas, distribuídas em três entregas, se apresentava ao leitor O conselheiro de Almeida Garret. Nele, também em terceira pessoa, se traçava um retrato da vida e da obra do escritor, não menos elogioso que o Prólogo das Viagens. E aqui parece não se pôr sequer dúvidas quanto à autoria garrettiana do mesmo. O próprio Gomes Amorim, logo no início da sua biografia de Garret, indica que está a utilizar o manuscrito original daquele texto e identifica o seu autor com as seguintes palavras que são, ao mesmo tempo, e tal como o juízo que há-de pronunciar sobre o prólogo das Viagens, de pena por esta fragilidade: Infelizmente, porém, até nos maiores engenhos se revela a fragilidade humana; e não foi este Garrett isento dela. Na sua biografia, publicada no Universo Pittoresco, da qual possuo o manuscrito original, escreveu ele, falando de si. Aquelas maneiras polidas, que só dá o nascimento e alta educação...» In Maria Fernanda Abreu, Leituras de Almeida Garrett, Revista da Biblioteca Nacional, 1999, Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Cortesia da BNP/JDACT